quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Poetisa, cortesã e bruxa

Autor: Nilton Kleina.

Uma das mulheres mais poderosas, influentes, inteligentes, admiradas e temidas de Veneza no século XVI. Essa é uma das descrições possíveis de Veronica Franco, uma cortesã e poetisa que frequentou as camadas mais nobres da cidade ao longo de duas décadas.

A vida da filha de cidadãos ilustres da região é triste e cheia de reviravoltas, mas mostra uma figura que desafiou padrões do período e encantou pela coragem e inteligência.

Veronica nasceu em 1546, filha dos venezianos Paola Fracassa e Francesco Franco. Ela tinha três irmãos e todos passaram por uma educação rígida graças a tutores privados, o que despertou rapidamente na jovem um interesse pela literatura. Com pouco menos de 20 anos, há registros de um casamento arranjado de Veronica com o médico Paolo Panizza, que não durou muito.

Aos poucos ela encontrou a ocupação que a transformou em uma figura célebre da sociedade local: ser uma cortigiana onesta, ou “cortesã honesa”. Esse título indicava mulheres que acompanhavam homens poderosos e forneciam favores sexuais mediante pagamento, mas também eram intelectuais que encantavam — e assustavam — as altas camadas de Veneza pelos conhecimentos em filosofia, literatura e artes.

A vida da cortesã intelectual mudou quando ela conheceu Domenico Venier, um poeta que mantinha uma academia literária na cidade. Ela virou uma figura conhecida no local, crescendo profissionalmente como editora de compilações de poemas e compondo os próprios sonetos.

As escritas de Veronica chamaram atenção por diversos motivos. Além da qualidade dos versos, as obras continham um tom erótico, já que descreviam os sentimentos da própria autora sobre ser uma cortesã e frequentar as camadas mais altas da sociedade local. Essa ousadia causava espanto e admiração.

A primeira obra conhecida de Veronica foi Terze Rime, de 1575, um conjunto de poemas — nem todos escritos por ela. Já a segunda é Lettere familiari a diversi, de 1580, um compilado de cartas do gênero epistolar, com descrições da vida cotidiana de Veronica. Ao longo da carreira, ela teria também compilado outras obras de menor divulgação em publicações financiadas do próprio bolso.

Ao conviver com poetas, escritores e artistas, ela fez amigos poderosos — incluindo o pintor Tintoretto, que imortalizou Veronica em um retrato, e o rei Henrique III da França, destinatário de uma de suas cartas.

No auge da produção artística e famosa entre as elites, a vida de Veronica Franco daria uma guinada inesperada em 1580, quando ela passou a ser a tutora dos filhos de Ridolfo Vannitelli. O homem a acusou de práticas de bruxaria e encantamentos mágicos, realizando pactos com o diabo para conseguir favores e seduzir mercadores locais. 

Os relatos não são claros, mas indicam que o ato foi de vingança: Veronica havia denunciado o patrão às autoridades da cidade por supostamente roubar algumas de suas joias.

Ela foi levada para julgamento pelo braço veneziano da Inquisição, que era tão rígido quanto as demais instituições. Sem testemunhas ou aconselhamentos, ela foi questionada durante vários dias a respeito da denúncia. Ela negou qualquer afiliação demoníaca, confirmando apenas que realizava rituais supersticiosos característicos da época, e que o grave pecado de comer carne às sextas-feiras, do qual ela também foi acusada, só era cometido quando ela estava grávida ou muito doente.

Ao fim de dias de julgamento, Veronica foi liberada sem qualquer punição, mas também sem recuperar os itens perdidos ou levar adiante as acusações contra Vannitelli.

Para piorar, uma epidemia de peste atingiu Veneza a partir de 1575, vitimando diversos membros da sociedade que eram essenciais para a manutenção do padrão de vida de Veronica. Sem reputação após o julgamento, com pouco reconhecido em vida pelo trabalho literário e com menos conexões, ela passou a última década de vida em um bairro modesto de Veneza.

Lá, ela iniciou trabalhos de auxílio para cortesãs mais velhas e de menor prestígio, inclusive planejando ajudá-las a ter uma vida melhor — algo que não chegou a ser colocado em prática. Praticamente esquecida, Veronica Franco morreu aos 45 anos, em 1591.

Ao todo, Veronica teve seis filhos, dos quais apenas três sobreviveram à infância. Durante boa parte da vida adulta, ela viveu financeiramente confortável: tinha uma casa própria com criados e tutores, além de roupas de luxo.

A vida atribulada, corajosa e cheia de reviravoltas de Veronica levou a figura a ser retratada em um livro de Margaret F. Rosenthal, escritora e professora especialista em literatura italiana da University of Southern California. A obra conta com detalhes a trajetória da cortesã, com destaque para a suas obras literárias e a intimidação que uma mulher de personalidade forte causava na sociedade local.

O livro foi adaptado em 1998 para os cinemas em Em Luta pelo Amor (Dangerous Beauty). A atriz Catherine McCormack, de Coração Valente, interpreta Veronica.

Além disso, a vida real da artista inspira parte do turismo em Veneza. Alguns passeios locais oferecem uma melhor explicação a respeito da sociedade da época sob o ponto de vista de Veronica — às vezes até com uma atriz interpretando a figura histórica.

Fonte: https://www.megacurioso.com.br/misterios/117609-veronica-franco-a-cortesa-e-poetisa-de-veneza-acusada-de-bruxaria.htm

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