Quando tomou posse como presidente do Brasil, em 1º de janeiro de 2019, Jair Bolsonaro fez questão de reforçar, diante do Congresso Nacional, seu compromisso de “reerguer a pátria” pela perspectiva conservadora e cristã. Na fala de cerca de 10 minutos ao povo brasileiro, o então novo chefe de Estado recorreu às principais bases de sua campanha eleitoral para afirmar que “libertaria” o país de opressões, incluindo, segundo ele, a “ideologia de gênero”.
“Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará a ser um país livre de amarras ideológicas”, disse Bolsonaro.
Termo guarda-chuva presente no vocabulário do presidente ao longo de seus quatro anos de governo, “ideologia de gênero” passou a aglutinar pautas moralistas mobilizadas pelo bolsonarismo a fim de garantir a fidelidade de uma base eleitoral.
Mas antes de ser levada aos pronunciamentos oficiais e às agendas do governo federal, a expressão sempre foi um dos assuntos mais citados nas redes sociais da família Bolsonaro. Como motor político, a expressão “ideologia de gênero” foi repetida por eles ao menos 206 vezes, desde 2014, no Twitter, Facebook e Instagram de Jair Bolsonaro e de seus filhos mais velhos, o vereador do Rio de Janeiro Carlos, o deputado federal Eduardo e o senador Flávio.
“Ideologia de gênero” começou a ser usada pela Igreja Católica há três décadas, em ataques aos movimentos feminista e LGBTI+, aos avanços de direitos sexuais e reprodutivos e à discussão das desigualdades por uma perspectiva estrutural. Aos poucos, também ganhou fôlego entre cristãos conservadores em geral, tornando-se condensador para qualquer assunto que esses grupos julgassem uma ameaça ao modelo heterossexual de família — incluindo equidade entre homens e mulheres, educação sexual e combate LGBTIfobia.
“Em meados da década de 2010, o campo político da extrema-direita encontrou na ‘ideologia de gênero’ um termo guarda-chuva capaz de articular uma aliança entre forças políticas heterogêneas. É um termo já antigo, que demorou a emplacar mesmo entre conservadores”, explica à Diadorim o pesquisador Richard Miskolci, professor de Sociologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador do Quereres, núcleo de pesquisa em Diferenças, Direitos Humanos e Saúde.
Para o sociólogo, no Brasil, a crise do governo de Dilma Rousseff (PT), a votação do Plano Nacional de Educação (PNE) e congêneres estaduais e municipais, e, sobretudo, as campanhas eleitorais de 2016 e 2018, criaram o contexto político oportuno para a apropriação da expressão por determinados grupos sociais. “Tal pânico moral foi uma estratégia de disputa do eleitorado por uma aliança circunstancial entre lideranças políticas não apenas religiosas, mas também com pautas econômicas de Estado mínimo e de luta anticorrupção”, explica.
Em um artigo escrito por ele e pelo pesquisador Maximiliano Campana, da Universidad Nacional de Córdoba, Miskolci afirma que “as aprovações do casamento entre pessoas do mesmo sexo em países como Argentina (2010) e Brasil (2011) foram o ponto de inflexão para que a noção de ‘ideologia de gênero’ passasse progressivamente a delimitar uma gramática política na batalha de empreendedores morais”.
Segundo os dois, a expressão tão recorrente no vocabulário do clã Bolsonaro é uma das armas de grupos conservadores que “buscam delimitar o Estado como espaço masculino e heterossexual”.
As lutas antiLGBTIfobia, sob o guarda-chuva da “ideologia de gênero”, aparecem nas publicações como promotoras do “homossexualismo”, da promiscuidade, da sexualização precoce de crianças, da imposição da ideia de que não existe diferenciação entre o masculino e o feminino. Há ainda associação ao crime de pedofilia. Nesse contexto, o combate à discriminação e ao preconceito são distorcidos e propagados como algo semelhante a uma “inversão de valores”.
O próprio presidente Jair Bolsonaro retornou ao tema “ideologia de gênero” durante a campanha para sua reeleição.
Mais recentemente, no dia 13 de setembro, Bolsonaro voltou a tocar no assunto, desta vez em entrevista à influenciadores evangélicos no podcast Collab (YouTube). Na ocasião, distorceu o conteúdo do Programa Nacional de Direitos Humanos para atacar seu principal adversário na disputa eleitoral deste ano, em que tenta a reeleição.
A terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos, assinado por Lula em 2009 e vigente até hoje, prevê o reconhecimento e a inclusão “nos sistemas de informação do serviço público, todas as configurações familiares constituídas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, com base na desconstrução da heteronormatividade.”
O texto defende, portanto, não a destruição das famílias heteronormativas existentes ou que venham a se formar, mas a expansão da noção de família para que outros formatos também sejam considerados como tal.
Combater esse tipo de discurso nocivo, no entanto, não é tarefa fácil, aponta Lucas Bulgarelli, Diretor Executivo do Instituto Matizes. Para ele, primeiro é preciso “enfrentar os efeitos concretos da ativação dessa ideologia de gênero”, que produz mais violência e exclusão contra a população LGBTI+. Ao mesmo tempo, reforça Bulgarelli, devemos nos contrapor às mentiras e associações falsas que são amalgamadas nessa expressão.
Fonte (citado parcialmente): https://www.cartacapital.com.br/politica/ideologia-de-genero-como-o-cla-bolsonaro-usa-internet-para-atacar-lgbti/
Nota: a pauta moralista em cima dos costumes é fartamente escorada no fundamentalismo cristão. Não é mera coincidência que o conservadorismo e a direita tenham grande presença e influência no meio cristão.
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