Autor: Adelson Bruno dos Reis Santos.
A teorização pulsional feita por Freud o coloca em rota de colisão com a moral sexual defendida pela Igreja, uma vez que esta considera o sexo apenas em sua finalidade procriativa. Esta moralidade rígida surge, através do olhar psicanalítico, como fonte de sofrimento psíquico. A repressão dos desejos inconscientes acaba por destruir a ética social pela transgressão violenta de seus valores pelo sujeito reprimido. Ao sujeito que escapa a esta situação, cabe uma resignação neurótica, ou seja, o adoecimento. Freud afirma que nossa civilização repousa sobre a renúncia da satisfação pulsional e que essa renúncia seria sancionada pela religião e oferecida à divindade como sacrifício.
As religiões ancoradas na tradição judaico-cristã, e que influenciaram a construção moral da civilização ocidental, sempre subjugaram e restringiram as mais variadas possibilidades das práticas sexuais. Através do Livro do Levítico, cuja autoria é atribuída ao próprio Moisés, podemos observar como a Lei Mosaica constrói o estatuto referente às práticas sexuais, considerando-as proibidas, abomináveis e impuras.
No século XVIII, o Direito Canônico, que organiza as leis da Igreja Católica, considerava impuro e criminoso o ato sexual em si mesmo e, a princípio, sujeitou à sanção penal e à perda dos direitos civis e patrimoniais a virgem, ou a mulher honesta que, espontaneamente, se unisse, carnalmente, a um homem. Proibia-se até mesmo o desejo e o próprio pensamento.
Sobre a imutabilidade da Lei Moral, no que diz respeito às questões sexuais, a Igreja ainda se pronuncia através de um documento elaborado pela Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé e intitulado como “Declarações acerca de algumas questões de Ética Sexual”.
O casamento passa a ser confrontado pela questão do prazer no ato sexual conjugal e uma das maiores consequências disto passa a ser a valorização do celibato que, influenciado pelo pensamento gnóstico, é adotado pelo Cristianismo, como uma maneira de se estar mais próximo de Deus. A sexualidade, portanto, se desenvolveu dentro deste espírito de moralidade cristã. As discussões acerca do prazer proporcionado pelas práticas sexuais, assim como dos pecados inerentes a elas, marcaram as bases constitutivas do pensamento da Igreja dos primeiros séculos e, até hoje, subjazem na concepção moral de nossa civilização. A concepção do Cristianismo, em seus posicionamentos sobre a moral, é de que o impulso da liberdade humana se dirige para o mal e para o pecado, ou seja, para a transgressão às leis divinas.
No século XIX, a “descoberta” de Sigmund Freud - a psicanálise - trouxe contribuições importantíssimas que abalaram a estrutura moral vigente em sua época com a afirmação de que nossos impulsos e desejos desconhecem barreiras para sua satisfação. A publicação, em 1905, dos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” fez com que Freud fosse considerado uma figura imoral, obscena e impopular por afirmar que as tendências sexuais chamadas perversas e catalogadas como aberrações humanas eram universais e presentes até mesmo nas crianças.
Segundo Ceccarelli (2000), Freud mostrou, assim, à biologia, à religião e a opinião popular, o quanto estas se enganaram no que diz respeito à sexualidade humana, propondo, a partir da visão da pulsão sexual - diversificada, anárquica, plural e parcial – uma outra maneira de se pensar o sujeito, cuja constituição não pode ser separada da sexualidade. A psicanálise, ao introduzir o conceito de inconsciente, também o revela como desconhecedor dos valores morais. Isto faz com que atos moralmente condenáveis sejam vistos, no entanto, como psicologicamente necessários. A moralidade rígida surge, através do olhar psicanalítico, como fonte de sofrimento psíquico. A repressão dos desejos inconscientes e sua impossibilidade de simbolização acabam por destruir a ética social pela transgressão abrupta e traumática de seus valores pelo sujeito reprimido. Ao sujeito que escapa a esta situação, cabe uma resignação neurótica, ou seja, o adoecimento.
O texto freudiano de 1908 nos apresenta um confronto entre a “moral sexual natural” e a “moral sexual civilizada”. Por “moral sexual natural”, devemos compreender um conjunto de normas que, embora limitem a sexualidade, o desejo e o prazer, permitem, todavia ao homem conservar sua saúde e sua eficiência na vida social. Já por “moral sexual civilizada” devemos entender uma moral, de caráter extremamente exigente e que, de maneira tirânica, obriga os homens à privação sexual, tendo em vista integrá-los ao sistema de uma intensa produtividade cultural.
Para Freud, entretanto, esta moralidade, elevada ao grau de uma tirania, exige imensos sacrifícios aos homens. O excesso de moralismo colocaria em risco a própria civilização. Freud aponta para o insuperável antagonismo existente entre sexualidade e civilização. Para ele, a moral sexual civilizada, demasiadamente restritiva, seria causa de danos psíquicos que colocariam em risco a saúde e a eficiência cultural humana.
A cultura que impõe a proibição da relação sexual fora do casamento monogâmico, apresenta segundo Freud, uma moral ‘dupla’ que evidencia uma “falta de amor à verdade, à honestidade e à humanidade” por diferenciar homens e mulheres, uma vez que transgressões masculinas são punidas menos severamente. A essa moral, ele atribui o aumento imputável da doença nervosa moderna: as neuroses originar-se-iam de necessidades sexuais de indivíduos insatisfeitos representando para os mesmos uma espécie de satisfação substitutiva.
Freud afirma que nossa civilização repousa sobre a supressão das pulsões, sobre a renúncia ao sentimento de onipotência, inclinações vingativas e agressivas. Essa renúncia seria sancionada pela religião e oferecida à divindade como sacrifício. No entanto, as tentativas de supressão das pulsões são sempre falhas e os fenômenos substitutivos que emergem em consequência desta “supressão” constituem as doenças nervosas modernas.
A consequência do que Freud chama de “óbvia injustiça social”, no que tange aos padrões de exigência impostos pela civilização, é a marginalização daqueles que ousam desobedecer às restrições e são, por isso, chamados de pervertidos e classificados pela Igreja como indivíduos contrários à lei moral natural.
Para a Igreja a sexualidade humana deve ser vivida a partir da perspectiva da “encarnação do Verbo”, uma vez que a pessoa humana encontra-se marcada pelo pecado e deve buscar uma vida nova em Cristo. A sexualidade humana, portanto, deve ser iluminada pela fé. A vivência da sexualidade não pode ficar excluída da ética cristã e reduzida a um nível meramente pulsional. Por sua natureza, a sexualidade encontra-se aberta à geração de novas vidas.
Para Freud, no entanto, “muitos indivíduos que se vangloriam de ser abstinentes, só o conseguiram com o auxílio da masturbação e satisfações análogas ligadas às atividades auto-eróticas da primeira infância”. A masturbação poderia resultar na involução da vida sexual a formas infantis. Seria esta uma explicação para os escândalos aos quais um número não irrisório de padres pedófilos submetem a Igreja?
Os modos de se pensar a sexualidade em nossa civilização ocidental - masturbação, relações pré-matrimoniais, homossexualidade, casamento, controle de natalidade, celibato, etc -sofreram profundas e significativas mudanças. A crítica social da família, partindo de movimentos como o marxismo, afetou amplas esferas sociais, rompendo assim a ideia monolítica e sagrada desta instituição. A revolução sexual, nos anos 60, implicou também um duro golpe às ideias católicas tradicionais sobre a moral e a sexualidade. A secularização da cultura ocidental fez-se irreversível.
A dimensão sexual parece constranger e assombrar a Igreja por ocultar implicações outras que
extrapolam o campo da sexualidade. Representações de Deus, da salvação e do pecado podem de fato estar em jogo em torno dessa problemática. Além de uma questão moral, a Igreja se vê imobilizada diante de um emaranhado de questões dogmáticas. Por isso mudanças na moral sexual encontram resistências e impossibilidades.
Outro fator a ser considerado é a construção ideológica católica em torno do poder da Igreja
como “sustentáculo da verdade”. Abrir mão de certas posições colocaria em xeque este poder e seu domínio sobre os fiéis.
A psicanálise deve prosseguir em seu objetivo de oposição às normas que alienam o sujeito, causando sua debilidade ou adoecimento. Devemos nos questionar se a moral sexual que se pretende “civilizada” vale o sacrifício que nos exige “já que estamos ainda tão escravizados ao hedonismo a ponto de incluir entre os objetivos de nosso desenvolvimento cultural uma certa dose de satisfação da felicidade individual”.
Fonte: Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental.
Nota: A análise psicanalítica indica alguns motivos pelo qual a Igreja ainda tem quem a defenda, apesar de seus abusos, absurdos, hipocrisias, contradições e escândalos. Eu diria que não é apenas o fenômeno da pedofilia que é causada pela doutrina da Igreja, mas também as demais formas de violências e distúrbios sexuais.
Publicado originalmente em 28/05/2009. Resgatado com o Wayback Machine.
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