terça-feira, 30 de agosto de 2022

Relatório da repressão/opressão sexual

Desde 2014, legisladores brasileiros, nos níveis federal, estadual e municipal, apresentaram mais de 200 propostas legislativas para proibir a “doutrinação” ou a chamada “ideologia de gênero” nas escolas. Essas propostas, que têm como alvo a educação sobre gênero e sexualidade, têm sido objeto de intenso debate político e social no Brasil, com alguns projetos de lei aprovados, muitos ainda pendentes e outros arquivados.

Este relatório é baseado em uma análise feita pela Human Rights Watch de 217 projetos de lei apresentados e leis aprovadas, e em 56 entrevistas com professores e especialistas em educação, incluindo representantes de secretarias estaduais de educação, sindicatos e organizações da sociedade civil.

O relatório tem como foco os esforços legislativos e políticos de suprimir abordagens multidimensionais e abrangentes da educação sobre gênero e sexualidade nas escolas públicas de ensino fundamental e médio no Brasil. O relatório contextualiza esses ataques a luz dos direitos à educação, à informação e à saúde, bem como o direito correlato à educação integral em sexualidade (EIS) – que têm sido violados.

Embora as leis e as políticas públicas brasileiras, tanto em nível federal quanto estadual, exijam o ensino da EIS, a maioria dos esforços de legisladores e grupos conservadores descritos neste relatório visam banir especificamente os conceitos-chave de “gênero” e “orientação sexual” em todas as áreas da educação, inclusive no que se refere aos direitos de meninas, mulheres e pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT).

O relatório evidencia a existência de uma campanha (por vezes coordenada, por vezes difusa) para desacreditar e banir a educação sobre gênero e sexualidade. Esta campanha foi amplamente amparada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, que abraçou a suposta necessidade desses projetos, ampliando-a para fins políticos, inclusive durante sua campanha presidencial de 2018.

Entrevistas com 32 professores e professoras de oito estados brasileiros revelaram hesitação ou medo por parte de alguns em abordar gênero e sexualidade em sala de aula devido aos esforços legislativos e políticos para desacreditar esse conteúdo e, às vezes, em razão do assédio por parte de representantes eleitos e membros da comunidade.

A Human Rights Watch verificou que pelo menos 21 leis que proíbem direta ou indiretamente a educação sobre gênero e sexualidade continuam em vigor no Brasil (uma estadual e vinte municipais). Projetos de lei relacionados também estão pendentes nos legislativos federal, estadual e municipal, com pelo menos alguns legisladores ainda propondo tais projetos – apesar de algumas decisões judiciais cruciais.

Em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu decisões históricas derrubando oito dessas leis: sete municipais dos estados de Goiás, Minas Gerais, Paraná e Tocantins e uma estadual de Alagoas. O Tribunal considerou que as proibições violavam os direitos à igualdade, não discriminação e educação, entre outros. Em uma decisão, o Tribunal considerou inconstitucional uma lei que proibiria a chamada “ideologia de gênero” porque seria uma “imposição do silêncio, da censura e […] do obscurantismo”.

Dessa maneira, o STF tem sido um importante órgão de contenção destas propostas legislativas, mesmo em um contexto em que o governo Bolsonaro continua buscando intimidar o Tribunal e ameaçado e insultado seus ministros. Especialistas em educação disseram à Human Rights Watch que as autoridades educacionais precisam fazer mais para aumentar o conhecimento sobre essas decisões a fim de garantir que professores, pais e outros responsáveis legais saibam que os professores têm a liberdade de ensinar essas disciplinas, de acordo com o currículo escolar. Pelo menos quatro casos relacionados permaneciam pendentes de decisão perante o Tribunal em março de 2022.

Alguns legisladores brasileiros se opõem à educação sobre gênero e sexualidade dizendo se tratar de “sexualização precoce”. Por exemplo, durante sua campanha eleitoral de 2018, Bolsonaro protestou contra a “ideologia de gênero” e desde então continua acusando professores de “doutrinarem” estudantes por meio da educação sobre gênero e sexualidade, argumentando que esse conteúdo representa uma “sexualização precoce”. Em junho de 2021, vereadores de Divinópolis, Minas Gerais, aprovaram por unanimidade um projeto que proíbe a destinação de recursos públicos para eventos e serviços que “promovam de forma direta ou indireta a sexualização de crianças e adolescentes”. Em dezembro de 2021, Caucaia, um município do estado do Ceará, aprovou uma lei que proíbe a discussão de “assuntos relacionados à sexualidade” e “ideologia de gênero” nas escolas municipais.

A ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que renunciou em março de 2022 para concorrer a um cargo político, denunciou a “doutrinação” de crianças e adolescentes e propôs um canal oficial para mães, pais e responsáveis legais de estudantes, denunciarem ao governo professores que ameaçam “a moral, a religião e a ética familiar”. Seu ministério não anunciou publicamente ações sobre essa proposta, mas alterou os protocolos da linha direta (Disque 100) que recebe denúncias de violações dos direitos humanos para começar a considerar a “ideologia de gênero” como violação.

A derrubada de projetos de lei não impediu ministros da Educação do governo Bolsonaro de empregarem uma retórica perigosa, correndo o risco de enraizar essas ideias nas instituições federais de ensino. O terceiro ministro da Educação de Bolsonaro, Milton Ribeiro, que renunciou em março de 2022 após acusações de corrupção contra ele e seu ministério, criticou a “erotização das crianças” e disse que a educação de gênero e sexualidade é um “incentivo” para que os jovens façam sexo.

Todos os professores com quem a Human Rights Watch conversou expressaram apreensão em abordar gênero e sexualidade em sala de aula devido aos esforços políticos para desacreditar esse material. Vinte dos professores sofreram assédio por abordar gênero e sexualidade entre 2016 e 2020, inclusive por representantes eleitos e membros de sua comunidade nas mídias sociais e pessoalmente.

No início de 2020, por exemplo, Alan Rodrigues, professor do ensino médio de uma escola pública da cidade do Rio de Janeiro que organizou com seus estudantes uma campanha contra a violência sexual, recebeu um e-mail anônimo dizendo: “Pare com a doutrinação dos alunos! Deixamos passar em 2019! Professores como vc deve [sic] morrer! Estamos de olho! Um aviso só!”. Alan Rodrigues disse à Human Rights Watch que tem recebido ameaças desde 2014 por abordar questões de gênero e sexualidade em sala de aula.

Virginia Ferreira, professora de inglês em Vinhedo, São Paulo, foi acusada por funcionários do governo municipal de “doutrinação” e “prejuízos no aprendizado dos alunos” depois de pedir a seus estudantes de oitavo ano que pesquisassem sobre feminismo e violência de gênero em comemoração ao Dia da Mulher em 2019. Ferreira disse ter enfrentado dois anos de processos disciplinares e ameaças nas redes sociais e postagens com o objetivo de desacreditá-la profissionalmente.

Clara Santos, professora de ciências de escola pública do Rio de Janeiro, foi acusada por colegas professores de ser uma “doutrinadora” depois que tentou organizar oficinas com estudantes sobre violência de gênero, feminismo e sexualidade em 2018. A diretora lhe disse para não discutir sexualidade, identidade de gênero ou aborto e proibiu-a de usar a palavra “gênero” nos títulos das oficinas. O incidente levou Clara Santos a tomar cuidado com os projetos que ela propunha e, por fim, deixar a escola.

Alguns professores foram intimados a prestar declarações à polícia, ao Ministério Público ou às secretarias de educação.

A prevalência desse tipo de assédio em todo o Brasil não é clara, embora professores e especialistas em educação digam que as leis e projetos de lei, a retórica política e os casos de assédio aos professores criam um “efeito inibidor” que afeta a disposição de alguns professores de tratarem sobre gênero e sexualidade em sala de aula. O STF observou em sua decisão que derrubou a lei de Alagoas em 2020 que o “chilling effect” pode levar os professores “a deixar de tratar de temas relevantes […], o que, por sua vez, suprimiria o debate e desencorajaria os alunos a abordar tais assuntos, comprometendo-se a liberdade de aprendizado e o desenvolvimento do pensamento crítico”.

O Escola Sem Partido, fundado em 2004, tem sido um grupo vocal que defende, nas legislaturas do Brasil como um todo, a proibição ou a restrição da educação sobre gênero e sexualidade. O grupo pretende defender a “neutralidade” nas escolas, ao mesmo tempo em que proíbe a “doutrinação” e o “proselitismo ao abordar questões de gênero”.

O conceito de “ideologia de gênero”, que se originou independentemente do Escola Sem Partido, mas que o grupo adotou, também é fundamental no debate. “Ideologia de gênero” é um termo genérico geralmente usado com o objetivo de insinuar um esforço feminista e “gay” para atacar os valores “tradicionais”. Inicialmente propagado pelo Vaticano na década de 1990, o termo agora é usado globalmente, sustentado por políticos e ideólogos oportunistas que aproveitaram sua falta de definição precisa e o empregaram para atacar uma série de questões diferentes, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, feminismo, direitos reprodutivos, direitos das pessoas trans, educação integral em sexualidade e até medidas de combate à violência doméstica.

No Brasil, grupos conservadores e representantes eleitos têm empregado a retórica da “ideologia de gênero” para alimentar alegações de “doutrinação” de crianças em escolas com ideais “políticos” e “não neutros” relacionados a gênero e sexualidade. Ao provocar o medo de que as crianças estejam em risco devido a informações “perigosas”, esses atores continuam usar a educação como plataforma política dentre segmentos conservadores da população.

De acordo com as normas internacionais, o direito das crianças à educação integral em sexualidade (EIS) – material de aprendizagem apropriado para a idade que pode ajudar a promover práticas seguras e informadas que previnam a violência baseada em gênero, desigualdade de gênero, infecções sexualmente transmissíveis e gravidez indesejada – é um elemento essencial do direito à educação. A informação sobre gênero e sexualidade é um componente crucial da EIS. O alto nível de violência de gênero no Brasil, incluindo violência contra mulheres, meninas e pessoas LGBT, é um indicador da urgente necessidade de tal educação nas escolas. Estudos e especialistas em educação vinculam a EIS a resultados positivos, como atraso no início das relações sexuais e aumento do uso de preservativos e contracepção, maior conhecimento sobre proteção contra violência sexual e baseada em gênero, bem como atitudes positivas em relação à equidade e diversidade de gênero.

Para defender o direito à educação e combater o “efeito inibidor” sobre a EIS, as legislaturas em todos os níveis de governo – federal, estadual e municipal – devem rejeitar imediatamente projetos de lei ou revogar leis que violem os direitos de estudantes de aprender sobre gênero e sexualidade. As autoridades nos níveis federal, estadual e municipal devem deixar de politizar a educação de gênero e sexualidade ou usá-la para consolidar apoio político e atacar adversários. O Ministério da Educação e os órgãos estaduais e municipais de educação devem implementar e aderir às leis e diretrizes existentes, decisões do STF e normas internacionais de direitos humanos que protegem o direito à EIS.

Em última análise, são os professores e os jovens – aqueles que mais precisam da informação – que são mais direta e negativamente impactados pela descaracterização e politização de materiais de aprendizagem como supostos difusores de “ideologia de gênero” ou “sexualização precoce”. O Brasil deve favorecer informações apropriadas à idade, afirmativas e baseadas na ciência sobre gênero e sexualidade. Todo estudante precisa dessas informações para viver uma vida saudável e segura.

Fonte: https://www.hrw.org/pt/report/2022/05/12/381942

Nenhum comentário:

Postar um comentário