segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Programa de travesti

Autora: Sara York.

Em 2020, convidei duas grandes educadoras a redigir comigo um Manifesto, naquele momento queríamos que o texto fosse acadêmico e potente, mas ao mesmo tempo, entregasse sua mensagem com leveza e de modo direto chegasse a cada pessoa que é atravessada pelos discursos trans-excludentes. Fomos publicadas pela Scielo a partir do convite de parceiras intelectuais. Desde então, temos visto um modo que aliança mulheres e homens trans e travestis, além de pessoas Intersexo, no fazer e manter portas abertas em várias dimensões que envolvem modos éticos, estéticos e políticos. Lembro que estamos no mês do ORGULHO LÉSBICO e alguns momentos de nossa história, precisam ser evidenciados.

Em 1580, Isabel Antônia, natural do Porto é considerada a primeira lésbica a ser expulsa de Portugal e vir para o Brasil onde foi condenada pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição para o Brasil (Bahia).

Em 1586, Gaspar Rois, feitor, ex-combatente na armada de D. Sebastião em Alcacer-Quibir, é denunciado ao Vigário Geral da Bahia de praticar sodomia com um negro da Guiné, o réu pagou então a um escrivão dez cruzados para queimar os autos que o incriminavam. É o primeiro sodomita “rebelde primitivo” da história pátria a reagir à homofobia institucional.

Em 1591, Xica Manicongo é morta por se recusar a usar as vestimentas que aos homens escravizados era imposto. Ela é uma dessas grandes personagens que nos faz pensar se termos atuais, como travesti ou pessoa trans, já seriam uma categoria possível para que pudéssemos descrevê-la.

Em 1592, Felipa de Sousa, lésbica contumaz, foi sentenciada pelo Visitador do Santo Ofício na Sé da Bahia e açoitada publicamente pelas principais ruas de Salvador “useira e costumeira a namorar mulheres.” Foi expulsa “para todo o sempre” para fora da capitania.

São pessoas trans contando histórias e auxiliando outras pessoas trans a caminharem por vários mundos! Aproveito a homenagem deste mês, às muitas pessoas trans brasileiras que (ainda) vivenciam a dor da discriminação, preconceito e exclusão para ecoarmos a CARTA que a ANTRA têm repercutido entre as muitas lideranças em todo Brasil como compromisso firmado pela vida.

É por estas e outras tantas histórias invisíveis que cada dia mais faz-se necessário assumirmos um compromisso público com a vida, e sobretudo com as vidas que são penalizadas antes sequer de poder sonhar.

Em 1992, no mesmo ano em que foi eleita Kátia Tapety, a primeira travesti para um cargo político no país, um grupo de seis travestis negras se posicionaram diante das violências institucionais perpetradas pelo aparato ofensivo do Estado brasileiro. Naquele momento, 4 anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, muitos comemoravam um Brasil redemocratizado. No entanto, no que tange a população de travestis e transexuais, as arbitrariedades permaneceram. O acesso à cidadania não havia sido garantido. Jovanna Baby, Elza Lobão, Josy Silva, Beatriz Senegal, Monique du Bavieur e Claudia Pierre France foram as responsáveis pela criação da primeira organização de travestis no contexto brasileiro. Desde então, as teias do Movimento Trans se expandiram, ampliando agendas e firmando a contribuição da população de travestis e transexuais na construção democrática deste país.

Em 2022, ano em que comemoramos os 30 anos do Movimento Trans, o Brasil experimenta novamente uma conjuntura de crise(s). Para além da sanitária, que impôs perdas importantes nos quadros do movimento em decorrência da Covid-19, estamos testemunhando fragilidades democráticas e humanitárias em razão de uma administração federal que intencionalmente tem desmantelado os ganhos conquistados desde nas últimas três décadas.

Ganhos marcados por tensões, ambivalências e disputas, mas que foram se acumulando graças ao esforço dos movimentos sociais no Brasil. Dentre eles, o Movimento Trans. Se antes nosso desafio era a omissão do Estado, hoje vemos uma atuação coordenada no executivo e legislativo contra os direitos da população trans. Não bastasse a transfobia vivida socialmente no país que mais mata a população trans no mundo, hoje, nos defrontamos com tentativas deinserir a transfobia no arcabouço legal.

Reafirmamos a importância de, nessas eleições, termos atenção aos partidos que atuam ou têm projetos com propostas antigênero, antitrans ou transexcludentes, e ainda aquelas que se mobilizam contra direitos LGBTQIA+. Em recente pesquisa realizada pela Escola Gêneros1, foram listados pelo menos 247 projetos de lei contra direitos LGBTQIA+ que estão em tramitação no Congresso Nacional, na atual legislatura, até 31 de dezembro de 2021: sendo 12 no Senado, e 245, na Câmara dos Deputados. E ainda de acordo com o portal Agência Diadorim2, em 3 anos, deputados apresentaram mais de 120 PLs anti-LGBTI+ nos estados.

Recomendamos às pessoas trans, ao se engajarem em campanhas, seja apoiando ou construindo efetivamente, que priorizem as candidaturas progressistas (seja de pessoas trans ou aliades) que tenham a pauta LGBTQIA+ como prioridade, tenham diálogo com nossa luta e mais especificamente com os movimentos trans politicamente mobilizados. Que atuem com ética, transparência e tenham trajetória ilibada na política.

Recomendamos também às pessoas trans que desejam se engajar na disputa político-partidária a ocupar esse espaço institucional para pautar as necessidades de nossa população. Mas fiquemos atentas ao compreender que os partidos não são fins em si mesmos, são meios pelos quais podemos pensar formas de enfrentar as injustiças e omissões do estado. E é necessário afirmar que não são (e nem podem ser) a única forma desse tipo de mobilização, pois sabemos que dentre todos os partidos NENHUM prioriza nossa luta, e essa é uma questão que não abrimos mão.

Há poucas semanas atrás foi divulgado pelo Tribunal Superior Eleitoral3que 37.646 pessoas trans utilizarão o nome social nas eleições de 2022. Um aumento de 373,83% comparado com o número de 4 anos atrás (7.945). Destaca-se a participação da juventude trans (21-24) com o maior contingente de pessoas trans que utilizarão o nome social, 5.440 pessoas. A soma desses trinta e sete mil com o número de pessoas trans já retificadas evidencia como nosso voto esse ano fará ainda mais diferença na reconstrução democrática que o Brasil tanto precisa.

Diante dos desafios que estão postos, pretendemos com essa carta4registrar o posicionamento da ANTRA, instituição que atua a três décadas na defesa dos direitos da população de travestis e transexuais, em relação às eleições de 2022, honrando o legado de Katia e direcionando orientações para a sociedade civil trans e compromissos para aquelas pessoas que irão concorrer aos cargos políticos e que estão alinhadas com o projeto do Movimento Trans.

ORIENTAÇÕES ÀS TRAVESTIS E DEMAIS PESSOAS TRANS DA SOCIEDADE CIVIL
 
Votem em pessoas que defendam à democracia, o estado laico, os direitos humanos e que tenham projetos de enfrentamento de toda forma de discriminação. Não basta ser trans ou LGBTQIA+, é importante olhar para além da própria identidade, sobretudo ao alinhamento político, as pautas que defendem (priorizando os direitos econômicos, sociais e políticos com recorte interseccional) e a atuação dessas candidaturas junto ao fortalecimento das instituições da sociedade civil, no enfrentamento ao racismo alinhado a luta antirracista, ao machismo em interlocução com os feminismos interseccionais prioritariamente, e com a luta anticissexista (e antitransfobia) com a garantia da participação de pessoas e coletivos de luta trans e transfeministas.

Além disso, frisamos para que fiquemos atentas às propostas apresentadas, ao compromisso com o coletivo em diálogo e com a garantia da participação efetiva de movimentos populares, e a forma com que essas candidaturas se posicionam publicamente em relação a nossa pauta.

TEMOS UM PROJETO PARA O PAÍS: COMPROMISSOS PARA CANDIDATURAS ALINHADAS COM O MOVIMENTO TRANS

Do mesmo modo, também consideramos que as candidaturas progressistas, alinhadas com o Movimento Trans, possuem um papel central no fortalecimento do nosso projeto para esse país. Precisamos eleger mais candidaturas negras, cis e trans, indígenas e aquelas que tem compromisso com as pautas antirracistas, anticissexistas e em defesa dos direitos de todas as mulheres.  

Precisamos reafirmar nosso direito de decidir, nas urnas, o projeto que melhor representa as nossas lutas históricas por liberdade, autonomia, por viver sem racismo, sem machismo e sem LGBTIfobia, por soberania alimentar, energética e nacional, por agroecologia e relação justa entre nós e entre nós e a natureza.

Por fim, frente ao número expressivo de vitórias eleitorais de parlamentares trans nas últimas eleições, fundamentadas pelo projeto político gestado no interior dos Encontros Nacionais de Travestis e Transexuais, impõe-se o reconhecimento do Movimento Trans como um contundente agente coletivo do campo progressista brasileiro. Nossa ausência em processos políticos, eleitorais e institucionais deve ser encarada como um problema que fragiliza a democracia brasileira.

Precisamos resgatar e investir cada vez mais no desejo de mudança, incentivar a participação política e lutar pelo sonho de uma democracia forte e comprometida com o caminhar rumo a um futuro seguro e firme para o futuro do Brasil que desejamos construir. E a participação de pessoas trans, das instituições da sociedade civil politicamente mobilizadas, em movimentos populares, ativistas e outras figuras públicas, constituem a espinha dorsal da luta contra toda forma de discriminação e violência, sendo os movimentos sociais, um dos principais pilares de nossa democracia.  

Sem travestis e pessoas trans não existe democracia!

Fonte (citado parcialmente): https://www.brasil247.com/blog/programa-de-travesti?amp

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