sexta-feira, 19 de agosto de 2022

As escravas da Opus Dei

Disseram que elas tinham “vocação para santas”, que foram chamadas a “servir a Deus”. Então submeteram elas a jornadas de trabalho de até 15 horas, isoladas em residências, com uma rotina de oração e penitências que incluía banhos frios e autoflagelação.

É o que dizem ter sofrido 43 mulheres da Argentina, Paraguai e Bolívia que, em setembro de 2021, denunciaram a organização católica ultraconservadora Opus Dei (“Obra de Deus”, em latim) ao Vaticano por tráfico de pessoas, exploração e servidão.

Agora, a ordem religiosa da região do rio da Prata — que inclui Argentina, Paraguai, Bolívia e Uruguai — anunciou a criação de uma “comissão de escuta e estudo”, embora diga fazer isso por “uma motivação moral e não legal”.

“Acreditamos que é necessária uma área que nos permita começar a curar o que precisa ser curado”, afirma a assessoria de comunicação da Opus Dei à BBC, o serviço em espanhol da BBC, sobre a criação da comissão. Questionada sobre as acusações, a ordem afirma que “não há notificação de denúncia por parte das autoridades eclesiásticas”.

“Ao final do período de escuta e estudo, a comissão apresentará suas conclusões e recomendações ao vigário regional, para que sejam tomadas as decisões cabíveis”, acrescentou a organização.

As mulheres, que ainda não foram à Justiça comum esperando colher mais depoimentos, segundo seu advogado, exigem indenização financeira e reconhecimento público da Igreja.

Suas histórias têm pontos em comum: elas foram recrutados entre famílias de baixa renda quando tinham entre 12 e 16 anos e trazidas para Buenos Aires nos anos 1970, 1980 e 1990, com a promessa de receber educação.

Em vez disso, denunciam, receberam treinamento em tarefas domésticas e trabalharam sem pagamento para altos membros e sacerdotes da obra fundada pelo padre e santo espanhol José María Escrivá de Balaguer.

A denúncia apresentada ao Vaticano afirma que “havia um plano de proselitismo” [esforço de converter pessoas a uma crença] e que tudo “foi feito com o conhecimento e consentimento das pessoas que detinham os poderes de organização e controle”.

“Não houve nenhuma reclamação trabalhista formal nos últimos 40 anos”, responde a Opus Dei quando questionada pela BBC. “Tampouco desde que foram realizadas as acusações públicas, tendo se passado quase um ano [desde as denúncias] e apesar de a Prelazia sempre ter estado à inteira disposição da Justiça”, acrescenta.

Alicia Torancio, uma das 43 denunciantes, reluta em colaborar com a comissão criada pelo Opus Dei.

“Como esperam que alguém denuncie o abuso e a exploração a quem abusou e explorou?”, diz à BBC.

Torancio entrou na organização seguindo uma irmã mais velha que hoje também é uma das denunciantes.

Ela ficou ali durante 13 anos. Entrou em 1994 com 16 e saiu em 2007, com quase 30. Agora, aos 44 anos, as marcas do que sofreu ainda estão presentes.

“Nos últimos seis anos estive imersa em uma terrível depressão, me trataram com psiquiatras da organização e tive uma tentativa de suicídio. Disseram-me que esta era a minha cruz, o que eu tinha que pagar pelos pecadores, e que com meu sofrimento eu estava apoiando o trabalho apostólico. Eles só me deixaram ir quando eu não estava mais apta para trabalhar.”

Torancio nasceu e cresceu em Mercedes, a quase 700 km de Buenos Aires. Aos 10 anos, enquanto seus irmãos ficaram para trabalhar no campo com o pai, um trabalhador rural, ela e as irmãs foram enviadas para a casa de parentes na capital argentina para concluir o ensino fundamental e depois trabalhar como empregadas domésticas.

Por meio de uma de suas irmãs mais velhas, que já trabalhava lá, ela conheceu um centro de formação para mulheres. “Ofereciam algo tentador, porque era uma casa onde se podia morar e receber treinamento”, diz à BBC.

Lá chegou Élida, a primeira Torancio a entrar na Opus Dei como numerária auxiliar, a categoria mais baixa de pertencimento à organização, a das “empregadas domésticas”.

Alicia Torancio não queria ser da Opus Dei. Mas conseguiu um emprego em uma residência masculina pertencente à organização.

Como estava sozinha em Buenos Aires, ofereceram a ela alojamento na residência feminina onde ficavam todas as meninas que estudavam no Instituto de Formação em Estudos Domésticos (ICIED, na sigla em espanhol), a “escola de domésticas”.

“Quando você chega lá, eles começam a fazer sua cabeça. Dizem que você tem vocação para ser santa, que pode contribuir com o mundo com seu trabalho e que vai ajudar a mudar o mundo. E eu era muito idealista”, lamenta.

Após três meses, ela escreveu a “carta de admissão” às autoridades da organização: um texto à mão em que declarava sua vocação.

Uma vez aceita, ela deixou de receber pelo seu trabalho e teve que começar a viver de um dia para o outro com as regras do “plano de vida” dos membros: acordar às 6 da manhã, tomar banho frio, rezar, estudar textos de Escrivá de Balaguer e trabalhar o resto do dia, sem remuneração.

"Dizem que você oferece seu trabalho a Deus. Estava preocupada por não poder mais enviar dinheiro aos meus pais. Disseram-me: ‘Você não precisa mais se preocupar com seus pais. Agora sua família é a Opus Dei’.”

Naquele momento, também nomearam uma diretora espiritual com quem ela devia conversar diariamente, e acrescentaram a obrigação de se confessar uma vez por semana a um padre.

Recebeu também uma liga de arame com pontas, chamada cilício, e um chicote com um feixe de cordas trançadas e enceradas, a disciplina, juntamente com instruções de uso: usar o arame apertado na perna duas horas por dia e rezar, chicoteando-se nas costas uma vez por semana.
Ela ainda tem as cicatrizes do cilício na coxa.

Com a admissão, ela teve que ir para a “escola de domésticas”. Era como uma escola secundária, mas com apenas três anos e sem diploma oficial.

Elas tinham aulas de culinária, limpeza, costura e boas maneiras. As aulas eram das 14h às 19h. Os pais de algumas das meninas pagavam uma mensalidade. Aqueles que não podiam pagar, como Alicia, sentiam a responsabilidade de trabalhar mais para compensar o não pagamento.

“Eles cortam seus laços com sua família e com o [mundo] lá fora, mas você também está proibida de fazer amizade com qualquer uma de suas colegas de classe. Eu também não podia compartilhar com minha irmã. Eles observam você o tempo todo e imediatamente chamam a sua atenção.”

O controle, diz ela, era exercido por meio de “correção fraterna”: todos observam todos e relatam tudo o que veem aos diretores, que as corrigem. “Eles transformam você em uma máquina.”

Uma vez por ano ou a cada ano e meio, a deixavam viajar dois ou três dias para visitar os pais. Tinha que fazer um pedido especial; às vezes eles diziam sim e às vezes não. Quando recebia permissão, ela tinha de ser acompanhada por outra garota.

“Você era infantilizada o tempo todo. Tinha que pedir permissão para as coisas mais bobas e não tinha dinheiro para se manter.”

No restante do ano, podia se comunicar por carta ou telefone. As cartas, tanto as que ela enviava como as que recebia, eram primeiro abertas e lidas pela diretora espiritual, conta Torancio.

As transferências entre os centros da Opus Dei eram obrigatórias, mesmo entre províncias e países.

Aos 20 anos, Torancio foi enviado para Laya, a maior residência de numerárias auxiliares do país, ao lado da sede principal da organização, “centro de estudos” por onde passam todos os membros do sexo masculino e onde também ficam as mais altas autoridades. Fica na Recoleta, bairro nobre de Buenos Aires.

A sede é um grande edifício de nove andares. Ao lado está o prédio das empregadas. Pode-se ver da rua as janelas cobertas que não permitem que se veja o exterior ou o interior a partir do lado de fora.

Através de uma ligação subterrânea, com portas duplas, as mulheres vão trabalhar todos os dias no edifício-sede — em horários específicos para evitar cruzar com os homens.

Lá estão a cozinha, a engomaria, a tinturaria e a lavanderia. Elas também limpam os quartos e espaços comuns, como o oratório, salas de conferências, de jantar e de estar. Também costuram, bordam e fazem o que for preciso.

Alicia Torancio chegou à maioridade e deu o passo final como membro da Opus Dei: a Fidelidade, que é a incorporação para a vida com compromissos de castidade, pobreza e obediência.

Esse passo é para todos os membros celibatários, que não podem se casar, e ocupam as casas da obra: os numerários e numerárias, que são de alta hierarquia e profissionais das classes média e alta; e as numerárias auxiliares, mulheres de origem pobre que servem e cuidam dos outros. É o caso de Alicia.

Acima de todos eles há uma cúpula de religiosos, mas eles são apenas 2% dos membros no mundo.

A Fidelidade envolve o rito de colocar um anel como símbolo de união com a obra e compromisso com a pobreza, que inclui dar tudo o que se possui e se recebe: seja um presente ou o salário, no caso de quem trabalha fora das casas.

Aos 22 anos, Torancio foi nomeada chefe de cozinha da sede: era responsável pelo cardápio, compras e serviço aos 100 homens que ali moravam. Foi aí que começou sua crise: “Era muita pressão e comecei a me sentir mal”, lembra.

Na Opus Dei há um manual para tudo. E qualquer questionamento é tratado como uma dúvida vocacional que tem uma resposta padronizada.

“Qualquer dúvida vocacional era abordada pela instituição como um problema psicológico/psiquiátrico com consequente prescrição de psicofármacos para neutralizar a vontade”, dizem as 43 mulheres na denúncia ao Vaticano.

Os psiquiatras e psicólogos são sempre membros da organização. Alicia foi levada a um psiquiatra que disse que ela não tinha nada e que estava fingindo sua depressão.

“O que eles sempre dizem é que se Jesus e os grandes santos suportaram tanta dor, como você pode não suportar?”

Levaram-na para outro psiquiatra que decidiu tratá-la. “Me deram medicamentos, mas era sempre algo que funcionava no começo, mas depois voltava a piorar. Eu tomava sete ou oito comprimidos por dia. Ou mais. Eu era um zumbi e pesava 45 kg porque não conseguia comer. Caí em um ‘poço’ e comecei a ter pensamentos suicidas”. Foram seis anos assim.

“Eu não conseguia me levantar. Estava tão mal que em dado momento pediram permissão à minha família para me tratar com eletrochoque, mas felizmente eles disseram que não.”

Depois de uma overdose de medicamentos, ela foi internada em um hospital psiquiátrico e só então recebeu permissão para ir para casa com sua família. Foi aí que a decisão de sair começou a amadurecer.

“Veja a lavagem cerebral que eles fazem, eu disse que estava indo embora porque estava prejudicando a imagem deles. Eu me sentia como uma inútil, que havia falhado com Deus. Isso é o que eles dizem.”

Quando voltou de Corrientes, escreveu a “carta de dispensa”, porque, assim como para entrar, também é preciso permissão para sair da Opus Dei. Em ambos os casos, isso é feito por meio de um documento manuscrito que é enviado ao Prelado, autoridade máxima da organização, que reside na sede em Roma.

É um edifício a poucos quilômetros do Vaticano. Ali está centralizado o controle dos 68 países em que a organização está presente.

Quando saiu da Opus Dei, com quase 30 anos, Torancio tinha apenas uma mala e uma sacola com alguns objetos pessoais. Foi para Corrientes, para a casa dos pais, porque não tinha nada.

Nos 13 anos em que esteve na Opus Dei, ela diz que nunca ganhou dinheiro pelo trabalho que fez. Não estava previsto pagamento.

“Eles não nos diziam que estávamos trabalhando. Diziam que estávamos nos santificando, que o que Deus estava pedindo de nós era servir e que desta forma estávamos ajudando a transformar o mundo.”

Foi somente em 2005, com mudanças na legislação trabalhista argentina, que a Opus Dei passou a pagar às numerárias auxiliares.

"Nos faziam assinar um recibo, nos mandavam sacar em um caixa automático e depois entregar tudo às diretoras. Não era possível guardar um centavo”, diz Alicia, que assim cumpria o voto de pobreza que a organização exigia.

Por conta disso, ela tem os dois últimos anos de contribuições à Previdência. Nos outros 11 anos em que esteve lá, não há registro de sua passagem.

“Elas eram membros da Opus Dei. Os católicos encarnam os valores do Evangelho de diversas maneiras. Os membros da Opus Dei fazem-no a partir do seu trabalho e da vida diária. Para as numerárias auxiliares, esse chamado ao trabalho materializa-se na sua escolha profissional de cuidado das pessoas e atividades ligadas à Prelazia”, argumenta a organização.

“Esse trabalho, como qualquer outro, é pago”, afirmam. Sobre o sistema trabalhista, dizem que “a Opus Dei se adaptou às leis vigentes de cada época”.
“O trabalho realizado pelas numerárias auxiliares nos centros da Opus Dei foi ajustado às leis vigentes em cada época.”

"Eles têm que reconhecer publicamente o que fizeram conosco”, afirma Torancio. “Há mulheres mais velhas com muitos problemas de saúde por causa do trabalho e que não podem sequer se aposentar.”

Fonte: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2022/08/domesticas-denunciam-opus-dei-exploracao-tortura.html

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