segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Um deus que traz morte

Por Tatiana Merlino
Publicado em 27 novembro 2020.

A maloca, o rapé, os rituais de iniciação: missões evangélicas impõem proibições que descaracterizam a vida dos povos indígenas. Entre os Matsés, interrupção de práticas religiosas levou a surtos de “corridas para o mato” e suicídios.

Quando uma jovem indígena “corre para a mata”, os moradores da comunidade ficam em estado de alerta. Ela pode sumir por vários dias e voltar machucada. Ou não voltar. Ou voltar e cometer suicídio se enforcando. 

O fenômeno ocorre entre os matsés, de tempos em tempos, desde os anos 1970, quando foram contatados por uma missionária do Summer Institute of Linguistics (SIL). O povo Matsés vive na região de fronteira do Brasil com o Peru, na terra indígena do Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas, região que abriga a maior concentração de povos indígenas isolados em todo o mundo.  

O impacto da entrada dos missionários evangélicos nessas aldeias foi tema da tese de doutorado da antropóloga Beatriz de Almeida Matos, da Universidade Federal do Pará. Ela explica que os episódios de “corridas para o mato” começaram a ocorrer a partir do momento em que houve a interrupção de um ritual de iniciação que fazia parte da tradição religiosa e cultural dos matsés. 

“Nesse ritual a mulher não podia ver o espírito sem a capa de envira, que é feita a partir da casca da árvore. E a missionária levou uma mulher para o lugar onde os homens estavam preparando a vestimenta dos espíritos, um ritual super importante que eles faziam”, descreve ela. 

Por conta da interferência no ritual, os matsés interpretaram que os espíritos ficaram com raiva e passaram a “perseguir e capturar” as pessoas. E, a partir de então, se iniciou a epidemia de gente correndo para o mato. Após dias correndo, alguns cometem suicídio. “Estive lá em 2005 e presenciei surtos. Em 2010, vi quase diariamente jovens correndo para o mato”, relata Beatriz. 

Com as missionárias, também chegou uma série de doenças e mortes, o que causou conflitos entre os próprios indígenas: havia os que tinham aderido às religiosas e os que as rechaçavam. “A doença gerou muita desconfiança entre os próprios parentes e em relação à missionária. E, se muita gente adoece, suspeita-se que essa força seja muito grande. E, como a estrangeira chegou com avião e muitas coisas distintas, é tomada como pessoa que carrega muita força, capaz de manipular espíritos.”  

Dos indígenas que conviveram com a missionária, “parte se converteu, os que ficaram do lado peruano. E os que ficaram do lado brasileiro criaram relação de pavor da mulher e romperam relações entre eles”. 

O Estado brasileiro, representado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), não considera essas questões, explica Beatriz, “pois estamos falando de espiritualidade e, para o Estado, isso é superstição”.

As consequências da interferência evangélica vão além de questões políticas e culturais. “Há um ataque à forma como eles se constituem”, explica Beatriz. “Uma pessoa indígena é constituída por suas almas, seus espíritos, suas relações familiares. E as práticas que os evangélicos condenam, como cheirar rapé, não podem ser substituídas por outras. O rapé, por exemplo, faz parte da constituição da pessoa Matsé, em especial a masculina. É como caçar. Ficar sem isso os desestabiliza. É cortar o modo de se constituir como pessoa.” 

Os missionários também condenam a maloca — a moradia coletiva —, considerada por eles “promiscuidade”. Feita de madeira e palha, na maloca vivem muitas pessoas, em alguns casos até a comunidade inteira. “Para eles, a maloca é a representação do corpo coletivo, de parentesco. O que os missionários fazem é muito profundo”, contextualiza Beatriz. 

Paradoxalmente, os missionários levaram doenças mas também remédios para curar as novas enfermidades. “Eles levam a doença espiritual e o remédio espiritual, isso é explícito. Desestabilizam espiritualmente as pessoas e tentam domesticá-las, dizendo que o canto para Jesus vai apaziguar um mal que ela mesma causou, tentando assim converter as pessoas”, explica Beatriz. 

Embora os Matsés que ficaram do lado brasileiro tenham resistido à conversão, a pesquisadora avalia que eles também sofreram impactos. “Os estragos são terríveis. O ritual [de iniciação] que foi interrompido pelas missionárias virou tabu. Não se pode nem falar sobre ele, porque os espíritos estão com raiva, cortaram relação com os matsés”, comenta.

A experiência com a missionária do SIL fez com que os matsés ficassem muito resistentes aos assédios dos evangélicos. Por isso não permitiram a entrada do então pastor Ricardo Lopes Dias, à época integrante da Novas Tribos, em uma das comunidades da etnia. Em fevereiro de 2020 ele foi nomeado coordenador da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Funai, órgão encarregado de toda a política indigenista do Brasil. 

Impedido naquele momento, ele adotou uma outra estratégia para tentar a conversão dos indígenas. Construiu uma igreja do lado de fora da terra indígena, na aldeia Cruzeirinho, em Atalaia do Norte, onde atuou entre 1997 e 2007. Com isso, conseguiu atrair algumas famílias Matsés, que se converteram. “Era uma comunidade fora da terra indígena. É bem grave também, porque expõe as famílias e esvazia essa terra”, observa a antropóloga. 

Naquele momento o objetivo do ex-missionário na região era “desenvolver um programa de evangelização dos Matsés no Brasil”, o que resultaria de um trabalho “demorado, meticuloso e sofrível, que envolveria jornadas de estudos para aquisição do idioma matsés, coleta de material cultural para análise e progressivamente uma elaboração de material linguístico, didático, informativo e religioso”, como descrito na dissertação de mestrado “As ‘traduções’ Matsés do contato histórico com missionárias do Summer Institute of Linguistics – SIL”, apresentada na Universidade de São Paulo em 2015 por Ricardo Lopes.

Quando foi anunciada a nomeação do ex-missionário para ocupar o cargo na coordenação de povos isolados, lideranças Matsés escreveram a seguinte carta de repúdio: “Gostaria de relatar aqui que o senhor Ricardo nunca teve autorização para entrar em nossa aldeia. Ele manipulou parte da população Matsés para que fosse fundada uma nova aldeia, chamada de Cruzeirinho. As lideranças tentaram ir até essa nova aldeia, em busca de um diálogo, mas foram expulsas com violência. O senhor Ricardo tirou proveito dos Matsés, se apropriou de nossa cultura e vendeu sua casa na aldeia para a igreja. Além disso, não houve autorização que o mesmo realizasse sua tese de doutorado sobre o nosso povo Matsés. Mais uma vez, ele tenta ingressar em nosso território. Não queremos novos abusos, por isso não permitiremos a entrada do senhor Ricardo”.  

Mas o senhor Ricardo entrou. E só saiu da Funai no último dia 27 de novembro, quando foi finalmente exonerado do cargo por desentendimentos com o comando da fundação. 

Fonte: https://bocado.lat/pt/um-deus-que-traz-morte/

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