quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Pátria, natureza e identidade nacional

28/09/2021.

O esquecimento, diria mesmo o erro histórico,
são um fator essencial da criação de uma nação
(Ernest Renan, Qu’est-ce qu’une nation)

A identidade nacional é tradicionalmente apresentada como “comunidade imaginada” (Benedict Anderson), “criação histórica arbitrária” (Ernest Gellner), ancorada em diversos elementos, por exemplo, a narrativa de nação, ênfase nas origens, na continuidade, na intemporalidade e na tradição (Stuart Hall), na invenção da tradição e no mito fundacional (Eric Hobsbawn), na memória do passado, na perpetuação da herança e no esquecimento dos conflitos de origem (Ernest Renan).

Sabemos hoje que a ideia de nação como identidade cultural unificada é um mito. As nações modernas são híbridos culturais. O discurso da unidade ou identidade oculta diferenças de classe, étnicas, religiosas, regionais etc. As diferenças culturais foram sufocadas em nome da construção da identidade nacional. É inegável que a ideologia do nacionalismo e do patriotismo constituiu importante ferramenta na formação do Estado nacional.

No que se refere à identidade nacional brasileira, o Brasil é talvez o único país da América Latina que não conquistou a independência nacional – ela foi concedida de cima para baixo. A República foi uma quartelada a que o povo assistiu “bestializado” (José Murilo de Carvalho). E à Independência, com licença do historiador, nem bestializado assistiu. As guerras e lutas que marcaram o povo brasileiro foram regionais (Farrapos, Sabinada, Inconfidência Mineira, Revolução Pernambucana, Revolta dos Alfaiates, Confederação do Equador etc.).

Nosso mito de origem foi a “descoberta” em 1500, em que já estão presentes “os três componentes da nossa nação imaginada: a identidade lusa, a identidade católica e a identidade cordial” (José Murilo de Carvalho). Esquecimento e erro é o que não faltaram nos mitos da história pacífica e democracia racial. Essa visão europeizante de identidade nacional excluía os colonizados. A história oficial foi escrita pelas elites na qual o povo está ausente. Isso corrobora a explicação de que o brasileiro teria mais orgulho da natureza do que da sua história.

A construção da identidade nacional, na Europa e em toda a América, privilegiou nos séculos XVIII e XIX o sentimento de unidade em detrimento da diversidade. Tratava-se de construir a Nação, o que foi feito oprimindo e sufocando identidades culturais, religiosas, étnicas, de gênero etc. bem como a divisão da sociedade em classes. Enfim, o conceito de nação, baseado na unidade, ocultou a diversidade.

A partir da segunda metade do século XX, as identidades culturais antes sufocadas começaram a reaparecer, colocaram no espaço público suas demandas e sobrepujaram muitas vezes a identidade nacional, visivelmente abalada com o processo de globalização que enfraqueceu os atributos básicos do Estado-Nação: territorialidade, soberania, autonomia. Esse ressurgimento de identidades culturais se dá paralelo ao enfraquecimento do nacional. Muitas vezes, o local passa a interagir com o global criando novos patamares culturais.

a tragédia foi muitas vezes reprimida em nome da construção do Estado nacional. A elite brasileira branca, herdeira dos colonizadores portugueses e, já no século XX, ao lado de enriquecidos imigrantes europeus e japoneses, sufocou a identidade dos negros e indígenas, bem como das mulheres, gays e minorias étnicas, religiosas e culturais, enaltecendo a identidade e o Estado nacional brasileiro. Em nome da unidade, a diversidade foi reprimida. O retorno do reprimido surgiu na segunda metade do século XX, principalmente com as reivindicações das mulheres, negros, índios e gays contra a misoginia, o racismo, a homofobia e os direitos dos indígenas. A nação perde seu caráter unívoco que esmagou a diversidade no período histórico de construção do Estado nacional. Hoje, não é mais possível deixar de reconhecer que a nação tem uma pluralidade de etnias, crenças, classes sociais e gêneros.

Original: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Sociedade-e-Cultura/Patria-natureza-e-identidade-nacional/52/51742

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