terça-feira, 27 de julho de 2021

O manto da alma

Platão, Fédon.

A meu parecer, nosso argumento não saiu do lugar e continua como alvo das mesmas objeções de antes. Que nossa alma já existisse antes de assumir esta forma, é proposição que não me repugna aceitar, por engenhosa e – salvo imodéstia de minha parte – suficientemente demonstrada.

Porém que subsista algures depois de estarmos mortos, com isso é que não posso concordar. Não aceito, também o reparo de Símias, quando afirma que a alma não é mais forte nem mais durável do que o corpo, pois sob ambos os aspectos ela se distingue imensamente dele.

Por que então, lhe diria o argumento, ainda te mostras incrédulo, se estás vendo que depois da morte do homem sua porção mais fraca ainda subsiste? Não te parece que a porção mais durável terá forçosamente de sobreviver igual tempo? Vê agora se o que digo contém alguma substância. Para maior comodidade vou socorrer-me, como o fez Símias, de uma imagem.

Para mim, falar desse jeito é o mesmo que fazer as seguintes considerações a respeito de um velho tecelão que acabasse de morrer: o homem não está morto: continua vivo em alguma parte; e para prova dessa afirmação, apresentasse a roupa que ele então trazia no corpo, tecida por ele mesmo, conservada e sem ter ainda perecido. E se alguém se mostrasse incrédulo, poderia perguntar o que é por natureza mais durável, imaginaria ter demonstrado que com maioria de razões o homem terá de estar bem, visto não haver perecido o que por natureza é menos durável.

Porém a meu ver, Símias, a realidade, é muito diferente. Presta atenção ao seguinte: Não há quem não veja quanto é fraco semelhante argumento. Havendo gasto muitas roupas por ele próprio tecidas, o nosso homem morreu, de fato, depois de todas, e não foram poucas, porém antes da última, segundo penso; mas nem por isso o homem é inferior ou mais fraco do que a roupa. Essa imagem, quero crer, se aplica tanto à alma como ao corpo, e quem argumentasse desse modo com relação ao corpo, falaria com muito mais propriedade, a saber: que a alma é mais durável e o corpo mais fraco e transitório, pois fora acertado acrescentar que cada alma consome vários corpos, principalmente quando vive muitos anos.

Se o corpo se escoa e se deliquesce enquanto o homem vive, a alma retece de contínuo o que for consumido. Forçoso será, por conseguinte, que, no instante de morrer, ainda esteja a alma com a última vestimenta por ela feia, só vindo a morrer antes da última. Desaparecida a alma, mostra, de pronto, o corpo sua fraqueza natural e se desmancha pela putrefação. Por isso mesmo, com base nesses argumentos não podemos confiar que nossa alma subsista algures depois da morte.

E se alguém concedesse ao expositor de tua proposição mais ainda do que fazes e lhe desse de barato não penas que nossas almas existem antes do tempo do nascimento, sendo que nada impede, até mesmo depois de nossa morte, existirem algumas e continuarem a existir, e muitas vezes renascerem e tornarem a morrer, por serem de natureza bastante forte para suportar esses nascimentos sucessivos: se lhe concedêssemos esse ponto, de todo o jeito ele se recusaria a admitir que a alma não se esgota nesses nascimentos sucessivos, para acabar numa dessas últimas mortes, por desaparecer de todo.

Dessa morte última, poderia acrescentar, e dessa decomposição do corpo que leva para a alma a destruição, ninguém pode ter conhecimento, por não estar em nós experimentá-la. Se as coisas se passam mesmo dessa forma, por força terá de ser irracional a confiança de qualquer pessoa diante da morte, a menos que esse alguém pudesse demonstrar que a alma é absolutamente imortal e imperecível. Sendo isso impossível, não há como evitar que o moribundo se arreceie de que no instante em que sua alma se desaparecer do corpo, venha a desaparecer de todo.

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000031.pdf

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