quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

O mito das tábuas

E deu a Moisés (quando acabou de falar com ele no monte Sinai) as duas tábuas do testemunho, tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus”. [Êxodo 31:18]

Então disse o SENHOR a Moisés: Lavra duas tábuas de pedra, como as primeiras; e eu escreverei nas tábuas as mesmas palavras que estavam nas primeiras tábuas, que tu quebraste”. [Êxodo 34:1]

“According to the Hebrew Bible, the Tablets of the Law as they are widely known in English, or Tablets of Stone, Stone Tablets, or Tablets of Testimony ... were the two pieces of stone inscribed with the Ten Commandments when Moses ascended biblical Mount Sinai as written in the Book of Exodus”.[https://en.wikipedia.org/wiki/Tablets_of_Stone]

Não deve ser novidade ao leitor que a Mitologia Judaica não é original, o povo Hebreu assimilou ou copiou muito de seus vizinhos e a mitologia foi fortemente modificada depois da influência que a Cultura Judaica adquiriu após o domínio Assírio, Babilônico e Persa.

A Cultura dos Acadianos (Babilônicos) tem um forte componente, a Mitologia Babilônica possui origens semelhantes da Cultura Suméria. Dentro do grupo da Mitologia Mesopotâmica pode-se apontar o Mito das Tábuas do Destino e do Poder.

“In Mesopotamian mythology, the Tablet of Destinies ... was envisaged as a clay tablet inscribed with cuneiform writing, also impressed with cylinder seals, which, as a permanent legal document, conferred upon the god Enlil his supreme authority as ruler of the universe.

In the Sumerian poem Ninurta and the Turtle it is the god Enki, rather than Enlil, who holds the tablet. Both this poem and the Akkadian Anzû poem share concern of the theft of the tablet by the bird Imdugud (Sumerian) or Anzû (Akkadian). Supposedly, whoever possessed the tablet ruled the universe. In the Babylonian Enuma Elish, Tiamat bestows this tablet on Kingu and gives him command of her army. Marduk, the chosen champion of the gods, then fights and destroys Tiamat and her army. Marduk reclaims the Tablet of Destinies for himself, thereby strengthening his rule among the gods”.[https://en.wikipedia.org/wiki/Tablet_of_Destinies_(mythic_item)]

Vamos tentar organizar os mitos. Originalmente, as Tábuas do Destino pertencem a Tiamat, uma entidade primordial, representada na forma de uma serpente, ou dragão, consorte de Abzu/Apsu, ambos associados às Águas Primordiais [Caos]. Esses Deuses Primordiais procriavam profusamente e tiveram descendentes. Houve uma contenda entre esses Deuses, os novos quiseram tomar o poder dos antigos, dando origem às inúmeras mitologias de Deuses, semideuses e heróis que matam uma serpente ou um dragão, simbolizando o fim de uma era e o início de outra. A Mitologia Judaico-Cristã sobre a Tentação de Adão, no Jardim do Éden, pela Serpente, constitui um reflexo gritante.

Na Mitologia Suméria, as Tábuas do Destino eram chamadas de ME e a posse delas concedia ao seu portador (ou portadora) poder absoluto.

“In Sumerian mythology, a ME is one of the decrees of the divine that is foundational to those social institutions, religious practices, technologies, behaviors, mores, and human conditions that make civilization, as the Sumerians understood it, possible. They are fundamental to the Sumerian understanding of the relationship between humanity and the gods”.[https://en.wikipedia.org/wiki/Me_(mythology)]

A posse das tábuas é tão importante que a Mitologia Suméria tenta “explicar” a transmissão dos ME de Enki para Inanna. A “desculpa” esfarrapada é que Inanna embebedou Enki ou o seduziu. Os mitos antigos constituem um problema sério para a civilização ocidental dita culta, porque mostra entidades poderosas, mas promíscuas, sem limites, nem tabus. Os mitos antigos estão repletos de histórias de Deuses procriando com suas mães, irmãs, filhas, sobrinhas e netas. Constitui um embaraço para as “religiões da Deusa” que costumam ignorar a importância do casamento sagrado, o hierogamos, como bem atesta James Fraser, no livro “O Ramo Dourado”.

O poder de Inanna é tão temível quanto sua contraparte mais conhecida, Ishtar, cujo culto dominou o Oriente Médio por séculos, seguido pelo culto de Astarte e, mais tarde, o culto de Aset (Isis), disseminado pelo mundo conhecido graças ao domínio romano (que fizeram uma procissão para a Deusa Cibele). Um embaraço enorme para a leitura provinciana dos mitos antigos pelos pagãos modernos e esse conceito de uma Grande Deusa, repleta de compaixão, omitindo a Face Negra dessa Grande Deusa, expressa sem prurido em Inanna e Ishtar. Fica impossível de encaixar Inanna e Ishtar nessa teologia caiada, sem espaço para Deusas violentas, agressivas e sanguinárias, como Kali que engole seres vivos por inteiro.

A Mitologia Suméria fica confusa. As Tábuas do Destino ora estão em posse de Enlil, ora estão na posse de Enki. Pela árvore da família desses Deuses, Enki é descendente de Tiamat, mas ele envia Marduk, que combate e vence Kingu, o escolhido de Tiamat (a quem foi conferido as tábuas). Ecos desse embate mítico são vistos no combate de Zeus contra Thyphon, Apolo contra Python e na iconografia do monoteísmo abraãmico da “luta final” entre Deus e o Diabo.

O padrão, se eu posso dizer assim, é a troca de poder entre Deuses Antigos e novos Deuses que, ao tomar o poder, suprimem e demonizam os Deuses que os antecederam. Essa usurpação do poder, entretanto, não é pacificamente aceita. Da mesma forma como aparecem Deuses, semideuses e heróis que vão aparecer para “manter a ordem”, inúmeros espíritos, entidades, frequentemente identificadas como “representantes do Mal”, tentam devolver a coroa a quem de direito.

“The story of our poem, briefly sketched, runs as follows: Once upon a time there was a huluppu-tree, perhaps a willow; it was planted on the banks of the Euphrates; it was nurtured by the waters of the Euphrates. But the South Wind tore at it, root and crown, while the Euphrates flooded it with its waters. Inanna, queen of heaven, walking by, took the tree in her hand and brought it to Erech, the seat of her main sanctuary, and planted it in her holy garden. There she tended it most carefully. For when the tree grew big, she planned to make of its wood a chair for herself and a couch.

Years passed, the tree matured and grew big. But Inanna found herself unable to cut down the tree. For at its base the snake "who knows no charm" had built its nest. In its crown, the Zu-bird--a mythological creature which at times wrought mischief--had placed its young. In the middle Lilith, the maid of desolation, had built her house. And so poor Inanna, the light-hearted and ever joyful maid, shed bitter tears. And as the dawn broke and her brother, the sun-god Utu, arose from his sleeping chamber, she repeated to him tearfully all that had befallen her huluppu-tree”. [https://www.sacred-texts.com/ane/sum/sum07.htm]

A cultura ocidental não seria a mesma se seus meios de comunicação (sobretudo o cinema) não reforçassem e confirmassem esse conceito maniqueísta típico das religiões monoteístas. Filmes de terror dão uma boa amostra disso. A representação de personagens identificados com o “Mal” está associada à noite, à morte, aos feitiços, às maldições. Criou-se, inclusive, uma demonologia, com direito à hierarquia e relações de força e poder que podem ser manipuladas por fórmulas tal como são descritas nos famigerados “grimórios”. Estas criaturas e entidades não são nossas inimigas, elas estão simplesmente lutando para devolver a coroa a quem de direito. O verdadeiro inimigo, além de nós mesmos, é o Deus Usurpador, aqui no ocidente, chamado de Deus, a saber, o conceito Cristão de Deus.

Talvez esteja na hora de revisitarmos e reinterpretarmos a cena da Serpente no Éden. A legítima representante e herdeira dos Deuses Antigos não quer a ruína e destruição da Humanidade. A Serpente [ou Lúcifer] quer libertar a Humanidade de seu cativeiro. Afinal, por que Deus [o Bíblico] se sentiu tão ameaçado quando a Humanidade adquiriu o Conhecimento? Será que ali não está um mito antigo que foi distorcido pelas religiões dominantes? Será que ali não há uma cena de Iniciação dentro de um Culto de Mistério? Uma Iniciação que nos reconduziria à nossa verdadeira origem e propósito, como filhos e filhas dos Deuses.

Assim seja, assim é, assim será.

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