segunda-feira, 25 de junho de 2018

Cíntia

Apenas um exemplo do que se esconde atrás dos olhos de cada pessoa. Enquanto lastimamos nossa sorte desdita, quantos não gostariam de tê-la?

Quando eu a conheci, também estava entretido, criando os meus próprios obstáculos que me separavam da vitória. Pouco me importei, quando outros me contaram sobre a perda dos pais. Até me irritei com que insistência lembravam-me dos problemas surgidos do julgamento da herança e outros revezes legais. Foi quando soube dela, a parte que poucos confessariam.

Ela teve que se criar sozinha, agüentar as cobranças, entregue ao destino, ainda que este pertença a quem o providência. Sua delicada linha da vida foi modificada brutalmente.
Certa tarde, percebeu a estranha presença que a saudou, prostrado:

-Encontrei-a tão só e de vida tão vazia, que aqui me faço presente. Para dar-te este algo, que a tantos falta e a muitos incita. Saberá com exatidão, os segredos das almas, a razão de suas dores e o que lhes impedem de serem felizes. Para que isso se realize, deverei cingir-te, assim poderei me encasular e fenecer em teu ventre.

Da mesma forma que apareceu, foi-se, deixando-a prenhe. Algo que é imperdoável: uma moça, mãe-solteira. Nove meses, duplo sofrimento: a censura da sociedade e o desenvolvimento do feto.

No momento certo, entregou aos doutores o fruto dessa estranha união. Embora clinicamente não se saiba o resultado, não foi levado em consideração, seja o que fosse, estava morto.

Conforme ela narrava suas chagas, sentia minha própria carne sendo dilacerada e eu, envergonhado pelo orgulho de pretender em ser o coitado.

Um filho tem sempre uma mãe, mas nem sempre a mãe tem o filho. Bastariam nove meses, uma barriga inchada e um trabalho de parto, para que uma mulher possa se considerar mãe?

Os registros foram apagados, os médicos os ocultam. Mas como explicar aqueles seios protuberantes à espera de uma boca de um infante para amamentarem? Eles estão lá, em riste, acusadores. A dona deles não viu o filho, não terá a alegria de vê-lo crescer e juntamente compartilhar as tristezas.

Uma mãe sofre pelo e por causa de um filho. Nós devemos invejar a sorte ou afugentar o azar? Ela então sofre, por ter sido frustrada a oportunidade de padecer. Afinal, só se conhece o que se vivencia; se não se conhece, não há o que temer; se já se conhece, menos ainda, pois já se sabe as consequências.

Do filho, pouco se pode dizer, sendo seu próprio pai e carrasco, agora pouca diferença este drama faz, as sensações não mais o seduzem. Este sim, eu invejo. Ele escolheu a forma mais doce de encontrar seu fim, iniciando um começo. Ele voltou para onde nós nunca deveríamos ter saído.

O que me atraiu neste mundo a fim de desejar ter nascido, é algo do que não me lembro. Mas aos meus irmãos, que ainda não nasceram e aos que isto desejam, fica o alerta. Ao menos ele pode escolher sua mãe, esta sim, criatura ativa, não o trapo de gente a quem eu fui entregue. Se eu tivesse mãe assim, talvez não seria tão frustrado, nasceria sexualmente satisfeito...

Dissecação.

Sol Negro: consciência atordoante, vontade em estado absoluto.
Separando-se a irradiação da luminosidade, vem a Névoa Obscura e a Aura Soturna.
Névoa Obscura: plenitude da dúvida, incerteza dos valores, consciência imersa.
Aura Soturna: assombro da certeza, conceitos que são confirmados, consciência estabilizada.
Da sombria soma, cria-se o Coração Abissal, que se fragmenta nas Águas Turvas, no Cristal Fosco, na Flor Definhante e no Fruto Letal.
Coração Abissal: desejo em profusão, o amor nefando, a razão de nosso ser.
Águas Turvas: sentidos embriagados, a noção da realidade alcança novas perspectivas.
Cristal Fosco: desilusão contundente, a fragilidade das crenças se desmancha ao colidir com a crueldade da existência.
Flor Definhante: mórbida beleza, as aparências enganam, sem sua casca superficial, o belo é mais horrível.
Fruto Letal: degustação sangrenta, a sedução do lado obscuro leva-nos a querer experimentá-lo.
Quão maravilhoso é, o Grão da Sina, que tudo começa em cada pessoa. Ele foi semeado em todo inconformado e que bom solo tem no desolado. Em todos os desdenhados pelo semeador de trigo, vem a se alojar, arremessado pelo tornado da fatalidade, provocado pelo giro da roda do destino.
Quão orgulhoso eu sou, por senti-lo enraizar e crescer este gérmen da morte embrionária, a morte sempre nascente,a morte renovada. Que cresce e toma conta de cada um que se conscientiza que somos todos mortos-vivos. Nós vivemos, pra cada vez mais, morrer.
Então, nada mais justo que conhecer as Trevas e desejá-las ardentemente, pois é nelas nosso Reino, lar e família de fato.

Celebração

-De tantos que me rodeavam, foi o único que veio.

- Você convidou quantos?

-O suficiente para que ao menos um viesse.

-Não te negaria coisa alguma. Cíntia, é nesta vida o que Lilith é na eterna.

-Não conheço tua Deusa, mas se Ela me conhecesse, tiraria este fatídico encargo em que me vejo empossada.

-Ignora a importância do seu destino a todos quantos se simpatizaram nesta obra?

-Ignoro. Como todos, estou aprendendo conforme sofro.

-Trouxe-me para amenizar tal sofrimento?

-Seria tentador compartilhar a dor para minorá-la. Não sou carrasca. Esta é a regra das religiões, para exaltarem o sacrifício e justificarem sua rigidez.

-Ainda assim, eu estou disposto a me oferecer ao suplício.

-As ofertas que me deste já me agradaram o suficiente... Pedi a tua presença para celebrar este fenômeno que nos reuniu.

-Então comemoremos, pelo resto do mês, ao natimorto, que se gerou em ti e nos deu o Grão da Sina. Sem ele, não teríamos aflorado e frutificado na Árvore da Morte. Nós não teríamos conhecido Coração Abissal, por intermédio de quem conquistamos o Sol Negro.

-Não sei se podemos denominá-lo. Eu nunca soube quem era, de onde veio e por qual arte adentrou-se em mim, fez-se como feto e de mim, seu ataúde. Se, ao menos, ele tivesse dito o porque escolheu a mim!

-Não lastimes. O que tem é maior do que teve Maria de Nazaré. Quantas mulheres podem dizer serem mães de seus amantes? Aquele que te tomou como homem e se tornou seu filho, silencioso, diz muito mais que Cristo.

-Bem que eu queria que ele pudesse falar. Se vivesse, ele poderia colocar as coisas em seus devidos lugares. Haveria alguma agonia, mas logo agradeceriam a ele por acabar com as religiões e todo o tipo de crendice, ilusão e fantasia, às quais a mente pobre se vicia, para suportar a existência.

-Se eu preciso acreditar em algo, eu acredito em mim mesmo. Só confiando em minha capacidade é que seria possível melhorar.

-Isso é bom, mas nunca o suficiente.

-No que me excede, além da competência, eu confio meu destino a ti, Cíntia. Mas caso tenha alma, esta pertence a Lilith.

-Depois de tanto tempo juntos, com tantas conversas, esclarecimentos...ainda crê em algo místico e confia no gênero humano? Que desapontamento...

-Eu sei que não sou um bom companheiro. Mas, considere...crê na tua história, como creio e conto, aceitando-a como escrevo. Então aceita tudo que tenho falado, feito e escrito, pois jamais lhe faltaria com a verdade. Tu és meu conforto neste mundo dominado pelo Império das Luzes.

-Então, apóstolo de Cíntia, estaria disposto a fazer o meu evangelho?

-Já não o faço?

-Eu tenho mais detalhes a te ensinar. Você terá que fazer uma iniciação rigorosa... Penetre em mim... Mas, por favor, não suma...

-Eu tentarei ficar na superfície... Mas eu enviarei a minha sonda ao seu mais profundo mistério...

Fogo Negro

Em meu autoconsumo, vou me questionando: de onde vim, como fui formado, que engenheiro me construiu, que arquiteto me planejou?

Eu não tenho uma face paterna em quem me escorar, nem um seio materno em quem me nutrir. Como todo órfão, eu fui me auto-instruindo e estabeleci minha personalidade com meus próprios esforços.

Ainda que se pese as dificuldades: aparentes desgostos e fiascos, um certo ciúme e inveja das criaturas que, em sua vida frenética e curta, tiveram tudo que eu não tive. Mas mesmo assim, eles são ingênuos.

Eu posso me considerar correto e em meus princípios, prevaleci. Entre certezas e dúvidas, amadureci. Já não desejava a vida exuberante, cheia de desejos e prazeres.

Ainda que tivesse a palavra limitada, a consciência e a ideia pulsava, eu tentava encontrar uma definição. Tentativas espúrias, o tempo apagou. Num lance ousado, apaguei meu eu, anulei todo conceito e personalidade, uma vez que vinham igualmente da falsa imagem que nosso delírio onírico considera ser vida.

Se o sonho do real se divide pela sensação, então pela dor se pode despertar. A dor extremada aniquila o corpo físico, mas já que não vivemos em absoluto, sonhamos, então a morte é o despertar total.

O incrível aconteceu: a consciência permaneceu, apenas pereceu a roupagem carnal. Eis que meu eu se propagou, uma vez que não fui gerado, não há como me exterminar, não haveria como me despertar. Contrariado, furioso comigo, numa autocomiseração em que me cria maldito, procurei meu espaço em um tempo infindável.

Em cada tentativa de despertar, apenas um outro sonho se sucedia, apenas um novo uniforme portava. Nesta rota, encontrei tantos outros que caminhavam como eu, mas estes tinham um destino, um Paraíso, um Pai celestial. Alguns eu segui, o suficiente, para ver um enorme engodo. Em minha presença, o Paraíso era enfadonho e o Pai não assumia a paternidade, por desconfiança, não me agradavam. Os neguei e minha andança, eu continuei.

Insólito foi encontrar criaturas que vinham a mim ou que me seguiam, com respeito e reverência, procurando algo que eu não tinha. Entretanto, comovido, compartilhei meus pensamentos. Não demorou muito e nos formamos em uma comunidade, com um espírito comum, mas sem um centro. Foi com esse espírito em conjunto que eu encontrei a ternura, então, talvez para isso nasci. Neste corpo está meu criador e somente nele poderei despertar. Eu dei permissão para ser absorvido, por minha vontade, me consumi e então o corpo teve um coração. O Supremo Espírito das Trevas adquiriu consciência própria e por ela me pus a pulsar. Desta forma, encontrei meu lugar e me despertei por completo. Estava sempre em mim a solução do enigma: eu sou o que quiser ser, o que sempre fui, sem necessidade de sê-lo. Eu sou o Fogo Negro.

Final

Eu não existo, ainda que sinta e tenha lembranças, são tudo ilusões. Eu tento justificar todo este sonho, seja com trabalho, seja com conhecimento. Mesmo que os meus esforços são em vão, todo esse conhecimento tornou-se mais um fardo do que uma fonte de prazer. Eu já devia saber que toda teoria não é muito boa na prática.

O poder vem daquilo que se faz na vida, não do que se sabe, mas não se consegue usar. A única coisa útil nesta vida, é o instinto.

Para poupar-me de maiores erros, eu devo esquecer meu nome, a primeira herança deste mundo, dada pelos meus pais postiços. Em seguida, renegar toda e qualquer ciência que venha a ter adquirido, por imposições, necessidades ou preferências pessoais.

Como poderia confiar em tal conhecimento, sendo que foi produzido por pessoas que, como eu, estavam delirando?
Aprofundando-me mais, aniquilando minhas memórias, reais, factuais, fantasiadas. Todas são enganosas, uma vez que elas são influenciadas pelas sensações e emoções. Uma vez que o corpo não existe, o que sinto é falso; uma vez que a mente é um vácuo que, por razões ignoradas sonha, as lembranças são parte dessa loucura que condicionam e bloqueiam a minha verdadeira existência.

Todos os valores que eu recebi, ensinados ou assimilados, são apenas uma tentativa para adequar meu ser a este mundo. Eu tentava imitar outros delírios, pois mesmo as virtudes, bem como os vícios, são como este mundo: falsos e superficiais.

Inclusive aquelas idéias que me são mais queridas, de fato não existem, pois elas são produto de uma mente ociosa. Elas são compensações criadas pela mente, por sua inadequação a esse mundo das luzes. Por mais que eu queira muito, por si, não existem.

Então, do que me importa:

Se não tenho namorada, pois o amor não existe, fosse tão importante não seria tão prostituído.

Se não há Governo, pois o Estado não existe, uma vez que a cidadania, quando não é irresponsável, é indiferente ou negligente.

Se não há família, já que o homem se une mais por medo da solidão que por laços afetivos.

Se não há Pátria, um pedaço de terra não é mais que pó nos olhos, onde se mora é a mente, não há fronteiras nem posses.

Se não falo, todo discurso é monótono, principalmente se a língua é traiçoeira, quanto mais se fala, maior a necessidade de se provar a si que existe.

Se não serei lido, pois não há espaço a tal obra que desperta, em um mercado editorial que visa ampliar a ilusão, tanto de quem compra quanto de quem vende.


Tudo é uma ilusão que, como tal, depende da imagem, que depende da luz. Então, está na hora de parar de sonhar com as Trevas. Como já estou lá, basta permitir ser envolvido e encontrar a realização plena.


Embrace the Nothingness.

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