Ainda temos pontas soltas a prender e nós a desfazer antes de passarmos adiante, para que o profeta do profano possa contar o que os Deuses fizeram após a morte de Anu. Sigamos a segunda rota onde veremos a história de Cronos e o porque seu destino está marcado por Saturno, pai dele e patriarca de sua família.
Para entendermos a delicada relação entre os Deuses e como esta relação resultou na tensão entre Saturno e Cronos teremos que voltar ao tempo onde não havia tempo, no lugar onde não havia lugar, o Caos.
O Caos era tanto uma circunstância quanto uma consciência divina composta de múltiplas personalidades, onde existência e inexistência se digladiam. Em algum momento desse tempo não-tempo duas consciências divinas tiveram poder suficiente para despertarem, ganharem a auto-consciência e se estabilizarem dentro do torvelinho do Caos. Estas forças, estas entidades, estas divindades eram tão primordiais e distintas, tão antagônicas e opostas que suas existências poderiam acarretar a dissolução deles e delas. Por falta de definição melhor, este é o Deus e a Deusa que nós louvamos e adoramos em nossos círculos. Nosso Deus e nossa Deusa tiveram e usaram o poder que tinham não para se autodestruirem, mas para se unirem em amor, desejo e prazer. O ato de criação do universo foi um ato de geração. A Deusa provê a substância, o Deus provê a modelação. E disso surgiram diversos oásis em meio ao Caos, inúmeros cosmos, compostos por inúmeras galáxias, inúmeras dimensões, inúmeros Deuses e Deusas.
Povo do mundo, não vos enganeis achando que a existência, a vida, apenas ocorre coberta por carne, por cadeias proteicas de carbono. O carbono é apenas uma das substâncias que conhecemos que formam a vida e nosso conhecimento é limitado. Vida e existência são condições que vão se manifestar de diversas formas que vão além do carnal, do material.
Este é o tempo quase-tempo, o Caos ainda rodeia a tudo, pequenos oásis, cosmos, galáxias, Deuses e Deusas. Conforme as coisas vão surgindo, ganhando consistência e permanência, a vida e a existência tornam-se mais complexas, os Deuses ganham “massa corpórea” e podem, enfim, copular e gerar sua descendência. Por imitação, por convenção, por um mistério, um Deus pode ser o rei ou o consorte, uma Deusa pode ser a rainha ou a donzela. A donzela pode reclamar seu direito de ser rainha quando tiver um filho. O consorte pode reclamar seu direito de ser rei ou unindo-se à rainha ou depondo o rei. A Deusa que tiver uma filha, esta torna-se sua herdeira e sua donzela que, para clamar por seus direitos, procurava algum Deus para unir-se. Cabe à deusa regente e suas filhas determinar se este Deus é o consorte ou é o rei. A situação de Saturno e sua natureza deram as condições para que fosse criada a tensão entre ele e Cronos, seu filho.
Saturno nasceu em uma situação nem um pouco propícia. Urânia, sua mãe, não tinha uma linhagem direta com a Deusa-Mãe, ela era fruto de um relacionamento casual e seus consortes não se tornaram um Deus-Rei. Assim como Cronos, Saturno conheceu uma vida cheia de dificuldades, privações e humilhações. Assim como Cronos, Saturno conheceu muitos pais antes de crescer o suficiente para lutar pelo seu lugar. Esse foi o erro e o crime de Saturno. Cansado de não ser notado, cansado de ver a honra de sua mãe desmerecida, escolheu uma rota de sangue até chegar ao trono. Um a um, matou todos os Deuses que tivessem conhecido sua mãe. Uma por uma, ele estuprou as Deusas, esposas e filhas, destes Deuses. Uma destas era Gaia, a Deusa que notou nosso mundo, de quem recebeu o nome em homenagem.
Quando Gaia exigiu seus direitos de herança, Saturno tratou de garantir seu privilégio de consorte e posição de Deus-Rei, aclamando a Cronos seu filho e protegido. Foi Saturno quem primeiro percebeu e fez proveito de uma regra implícita nos direitos de linhagem, iniciou a supressão do matriarcado e iniciou a implantação do patriarcado. Saturno usurpou o poder através de Gaia e paradoxalmente Cronos, seu filho com Gaia, garantia seu nome como patriarca da família.
Por sua própria natureza, pelas condições em que assumia o encargo, pelo capricho do Destino, Saturno foi um tirano de sua família e de sua casa. Gaia sofreu as mesmas humilhações que Urânia e Cronos o lembrava de sua própria infância atribulada. Saturno sabia muito bem o fim que lhe aguardava e pressentia que Cronos viria lhe trazer a Nemesis.
Quando Saturno conheceu Anu e soube de seus planos de sair do Caos em busca de um lugar para erguer um novo reino, ele associou-se imediatamente com Anu, tanto por este ser semelhante a ele, quanto para solidificar sua autoridade na família. Na corte dos Deuses, com a vassalagem a Anu, tornou-se tolerável a presença de Saturno. Com a morte de Anu e a destruição da Cidade dos Deuses, Saturno teve o bom senso de tomar a si a responsabilidade de manter a construção da colônia de Albion. Os Deuses estavam tão assustados e perdidos que se sujeitaram a Saturno. Alguns temiam que Ninmag ressurgisse, outros que Anu retornasse, mas a maioria havia se acostumado tanto a servirem a Anu, de dependerem tanto de sua liderança, que os Deuses receberam com júbilo a coroação de Saturno como Senhor de Alba. Por outro lado, a morte de Anu e a destruição da Cidade dos Deuses dariam a Cronos as condições para crescer, se fortalecer e, no tempo certo, contestar e destronar Saturno. Uma tragédia que cessaria apenas quando um filho de Cronos reestabelecesse a ordem.
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