Entre o fim da Idade Média e o início da Era Moderna a
Europa passou pela Renascença e o início das primeiras expedições colonizadoras
do que ainda é chamado de Novo Mundo, em uma visível analogia aos sermões
evangélicos sobre a promessa de Cristo e de um Mundo Novo.
Um dos resultados da colonização europeia, tanto nas Américas,
quanto no Oriente Médio e Ásia, foi a imposição da cultura ocidental branca e
cristã em outros povos e culturas, causando aculturamento e, em casos extremos,
genocídio.
O resultado nas colônias americanas da cultura europeia, com
a cultura nativa local e a cultura dos negros escravizados produziram as condições
ideais para engendrar um sincretismo religioso único e diversificado.
A histeria e paranoia que aconteceu em Salem aconteceram
exatamente como um resultado indesejado entre o choque da religião oficial e a
religião dos negros africanos, muito embora nas colônias espanholas e
portuguesas tenha tido um resultado mais positivo, ainda que as novas religiões
ainda existam de forma clandestina, eventualmente tolerada, mas ainda vista
como superstição grosseira.
O Santo Ofício também atuou seus tribunais de exceção nas
Américas e para os fins deste blog, eu irei focar na história do Brasil, a
Terra de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, chamada também de Quinto dos Infernos,
onde Portugal instaurou uma colonização de extração, onde os capitães reais
nomeados tinham mais interesse em enriquecer do que em gerenciar a
administração pública e onde a maioria dos colonizadores que vinham de Portugal
consistiam de degredados, hereges, feiticeiras, ciganos e cristãos-novos.
Eu cito o trabalho de Ângelo Adriano Faria de Assis intitulado
“Feiticeiras da Colônia. Magias e Práticas de Feitiçaria na América Portuguesa
na Documentação do Santo Ofício da Inquisição”:
Embora seja considerável o número de judeus que procuraram
abraçar o cristianismo, não foi menor a quantia daqueles que optaram pelo
caminho oposto, e que continuaram a judaizar ocultamente – os criptojudeus -,
gerando desconfianças sobre todo o grupo de cristãos-novos, vistos como
principal ameaça à pureza católica, e motivo primeiro para a criação do
Tribunal do Santo Ofício que, ao longo de duzentos e oitenta e cinco anos de
funcionamento, concentraria seus homens e esforços em desvelar a ameaça
criptojudaica. São estes cristãos-novos – judaizantes ou não - responsáveis
pela imensa maioria dos códices processuais - aí envolvendo acusações,
confissões e processos inquisitoriais decorrentes - que hoje formam o conjunto
de documentos sobre a Inquisição portuguesa depositados nos Arquivos Nacionais
da Torre do Tombo, em Lisboa.
Na luso-América, o Santo Ofício perseguiu todo o tipo de
crimes e heresias que estavam ao seu alcance, assim como situações que não
estava exatamente preparado para julgar – a exemplo das práticas religiosas e
culturais ameríndias, que envolviam desde a beberagem de preparados sagrados à
prática ritual do canibalismo. Bigamias, desvios sexuais os mais diversos,
desrespeitos aos símbolos católicos, desconhecimento das práticas cristãs,
enfim, um variado rol de situações contrárias à boa norma do catolicismo que
coloriam o cotidiano da colônia.
Apesar de encontrarmos religiosos bem preparados, com
consciência do papel que desempenhavam para o sucesso da empreitada catequista
– Nóbrega e Anchieta são exemplos claros deste bom preparo -, não eram raros,
por outro lado, os representantes do catolicismo que haviam sido mandados à
região colonial para fugirem da má fama que possuíam ou mesmo cumprirem
degredo, punição pelos crimes de heresia cometidos na metrópole: o mais das
vezes, culpas de sexo. O padre Frutuoso Álvares, vigário de Matoim, Recôncavo
da Bahia, Bahia, por exemplo, inauguraria os trabalhos da visitação de 1591
expondo sua culpas ao visitador: viera degredado de Braga, em Portugal.
Condenado às galés, mas sem cumprir a pena, fora enviado a Cabo Verde, onde
também seria acusado de “tocamentos torpes que teve com dois mancebos”. Preso e
enviado à Lisboa, foi sentenciado e condenado a degredo para sempre nas terras
do Brasil, e “de quinze anos a esta parte que há que está nesta capitania da
Bahia da Todos os Santos, cometeu a torpeza dos tocamentos desonestos com
algumas quarenta pessoas pouco mais ou menos, abraçando, beijando”. Não se
emendou.
O comportamento dos colonos não se diferenciava em larga
escala do modelo reprobatório de certos representantes do clero, que lhes
serviam de espelho no parco cuidado em relação às questões da Fé e suas
obrigações. Distantes do reino, submetidos a uma vigilância clerical realizada
sem a mesma constância e intensidade daquela exercida na metrópole, o
catolicismo acabou no Brasil por ganhar novos contornos: amenizadas as
cobranças sobre os atos praticados, avançou na direção de um diminuto apego às
missas, de uma menor preocupação com o comportamento, e também, do sincretismo.
A falta de uma Igreja fortemente organizada, por sua vez, colaboraria para a
inclusão de práticas que lhe eram originariamente estranhas.
Para os trabalhos necessários, chegavam negros rebaixados à
escravidão, mas que traziam consigo crenças e práticas da antiga fé seguida.
Somados os autóctones e sua contribuição, formava-se um caldeirão não só étnico
mas, principalmente, cultural, onde as crenças africana e ameríndia permaneciam
ativas, disfarçadas em santos católicos e práticas envolvendo rituais cristãos,
forma de resistência nem sempre inconsciente. Exemplo desta maleabilidade de
fronteiras religiosas é a existência de várias santidades no período colonial,
a mesclar as crenças ameríndias com os ideais católicos, ou mesmo a
personificação de divindades africanas em representantes do Céu cristão.
O catolicismo abrasileirou-se, por fim. É o que se vê na
quase totalidade das páginas assinadas pelo visitador Heitor Furtado de
Mendonça e seu fiel notário Manoel Francisco. Nas perguntas feitas a
confessores, acusadores e acusados e em anotações às margens dos depoimentos, o
inquisidor e seu assistente deixam vazar dos documentos produzidos o espanto
que os tomara, visivelmente assustados com o desfile de heresias que
solenemente eram levados a ouvir, calcadas na fraca e distorcida fé que
presenciavam durante as sessões de confissões e denúncias de colonos ou
indivíduos de passagem pela região brasílica.
Para Laura de Mello e Souza, o catolicismo colonial era
resultado da “tensão entre o múltiplo e o uno, entre o transitório e o vivido”,
construído a partir da “multiplicidade de tradições pagãs, africanas,
indígenas, católicas, judaicas”, inserida no “cotidiano das populações. Era,
portanto, vivência”. Vivências diversas, percepções distintas de popular,
constantemente transformadas pelo ir e vir de colonos - noção por demais
elástica numa sociedade em formação. E essa vivência religiosa ganhava na
colônia aspectos de popular, embora longíssimo estivesse de representar o
ateísmo desta sociedade. Significava menos hostilidade do que vivência íntima,
subjetiva e profana com a religião.
A aparência dantesca do desregrado catolicismo colonial, já
dissemos, não se restringia às ações praticadas por cristãos-novos,
considerados os grandes culpados das mazelas gerais. A miscigenação étnica
tornou-se também miscigenação religiosa. O convívio num ambiente menos
repressor acabou por afrouxar os limites da fé católica. Para o desespero do
visitador e da empreitada colonizatória, cristãos velhos mantinham as mesmas
práticas de desacato e de desrespeito à religião e seus símbolos sagrados que
os neoconversos, avivando-se o contato entre os grupos de sangue diverso pela
troca de experiências - circularidades culturais.
Não são poucas ou isoladas as referências quanto à
humanização de santos, colocados de castigo, virados para a parede, postos de
ponta-cabeça ou escondidos até que os pedidos a eles feitos fossem atendidos.
Ou ainda, xingados, ameaçados, envolvidos em apostas, tendo suas imagens com os
olhos perfurados e merecendo adjetivos de ofensa quando os solicitantes perdiam
a esperança de ver realizadas as promessas feitas: pequenas vinganças dos
desejos recusados. Dar forma humana a santos e divindades caíra assim no gosto
popular, rebaixados às dificuldades do trópico para socorrer os aflitos ou
serem punidos quando não atendiam aos apelos – nada muito distante do que já
ocorria na Europa do Medievo, como se pode perceber nos estudos clássicos, por
exemplo, de Francisco Bethencourt, Jean Delumeau e Mikhail Bakhtin. As
aproximações das divindades com o mundo material eram constantes, isso quando
não se viam humanizados por completo: por tudo jurava-se em vão, invocando os
nomes de Deus - “cornudo”, “corno”, “somítigo”, “fanchono” -, de Cristo -
“bendito sea el carajo de mi señor” - e de Maria, a todo momento questionada
quanto à sua virgindade, retratada com os seios à mostra, citada em juras por
suas partes pudentas, chamada de puta com todas as letras: ganhava contexto
erótico a intimidade com os símbolos do catolicismo.
“A filtros, mágicas, feitiçarias, simpatias, adivinhos,
beberagens, poções, rezas e orações também se imputavam poderes milagrosos.
Para o bem e para o mal, envolvendo acordos com deus e o diabo. Não eram raros
os oferecimentos e práticas mágicas para recuperar ou retirar a saúde de
alguém, trazer riquezas, gerar ruína, amaldiçoar casais ou pessoas, conquistar
e manter fiel o homem ou a mulher amada para toda a vida.
Depoimentos variados ao visitador dão conta dessas mágicas
amatórias, que pareciam ser bastante freqüentes na lide colonial. Em comum, o
costume de apelidar estas mulheres apontadas como feiticeiras: Boca Torta,
Nóbrega, Arde-lhe-o-rabo, Mija vinagre, nomes muitas vezes pejorativos, que
ajudavam na construção do imaginário sobre estas damas do mundo da magia.
Feitiços de todos os tipos. A cristã velha Paula de
Siqueira, em sua confissão, dizia ter aprendido com Isabel Rodrigues, “a
Boca-Torta d’alcunha”, que tinha fama de feiticeira diabólica, “umas palavras
para que, dizendo-as a alguma pessoa, lhe quisesse bem e amansasse, as quais
palavras nomeavam as estrelas e os diabos e outras palavras supersticiosas e ruins”.
A cristã velha Maria da Costa lembraria ao visitador da
época em que era solteira, nove anos antes quando, em sua casa, “uma mulher já
defunta, d’alcunha a Mija vinagre, perante ela que se não fora com medo da
Santa Inquisição, que ela lhe fizera uma coisa com que seu pai fosse contente
de casar com o dito Álvaro Sanches, e depois lhe disse que não via bem em suas
candeias se havia ela de casar com ele”. Contava também uma intrigante história
que ouvira do marido. Há dois anos, pedindo alguém ao escrivão da cidade,
Antonio Guedes, “que lhe ensinasse a trejeitar e fazer os trejeitos que ele
faz, ele respondeu ser necessário dar uma nádega ao diabo”!
Já Maria de Góis informava que, por volta de quatro anos
antes, “de noite, no caminho de Vila Velha, foram achadas em feitiçarias Dona
Mécia, mulher de Francisco d’Araújo, e Dona Isabel, mulher de Cristóvão de
Barros”, ambas moradoras na Bahia. Também dizia que ouviu dizer em fama pública
que uma mulata de sobrenome Correia, que morava na casa de Fernão Cabral de
Taíde, senhor das terras de Jaguaripe, “era feiticeira com arte do diabo, e que
tinha uma cobra dentro em uma botija e que fizera arribar uma ou duas vezes o
navio em que ia degredada”.
Uma das mais impressionantes denúncias da Primeira
Visitação, pelos fatos e riqueza de detalhes que revela, foi aquela feita por
Guiomar d’Oliveira, cristã velha de Lisboa moradora em Salvador. Conhecera
quinze anos antes no reino uma tal Antônia Fernandes, cristã velha, apelidada
“a Nóbrega”, que viera para a colônia “degredada por alcovitar sua própria
filha”. Esta, chamada Joana Nóbrega, além de prostituir-se - dormindo “com os
estrangeiros por detrás, consumando o nefando pecado dos somítigos porque lhe
pagava bem” -, seguia os passos da mãe, possuindo um protetor doméstico,
espécie de diabrete de estimação: “também tinha o seu ofício de feiticeira
diabólica e tinha um familiar em um anel que trazia no dedo, ao qual chamava
Baul”. Grande conhecedora de feitiços, dizia a Nóbrega “que falava com os
diabos e lhe mandava fazer o que queria, e eles lhe obedeciam”. Aconselhava
ainda sua discípula “que se não benzesse nem nomeasse Jesus, e (...) que um
diabo chamado Antonim era seu particular servidor (...), e que Lúcifer lho dera
por seu guarda”. E prometia: “se ela confessante quisesse, lhe faria e
ensinaria com feitiços com que fosse bem casada com seu marido”.
Outro a possuir um diabrete particular era o célebre João
Nunes Correia, homem riquíssimo radicado em Pernambuco, envolvido com a
produção e o comércio do açúcar, com a venda de escravos, coletor e impostos,
onzeneiro, enfim, homem de mil e uma atividades. Conseguira o demônio de
estimação para protegê-lo das inimizades que colecionava, e não eram poucas,
conforme se percebe pelo grande número de acusações de que foi vítima na mesa
da visitação.
Cristão-novo, chamado de rabi dos judeus de Pernambuco,
fazia parte de uma confraria religiosa católica. Porém, era mais homem dos
negócios do que homem da Igreja – fosse qual fosse, comportando-se conforme as
circunstâncias -, e externava seu pouco caso com a religião dominante
envolvendo-se também com feitiçarias. Homem dos negócios, pouco afeito às
questões de fé, mas precavido. Por isso, procurava a ajuda de meios
sobrenaturais para aumentar seu prestígio e força, resolvendo, dessa forma, os
problemas que o dinheiro não conseguia. Alguns em Olinda conheciam a história
que envolvia João Nunes e uma certa Ana Jácome, “mulher mundana, torta de um
olho”, feiticeira que já viera degradada do reino. Jácome era famosa por suas
magias para encontrar negros fugidos, e o próprio Nunes experimentara o
remédio. Participando do comércio de escravos, indispensáveis para o trabalho
colonial, se tornava essencial no fornecimento destes aos demais engenhos e
interessados, que dependiam dele para a aquisição da mão-de-obra necessária ao
bom funcionamento de seus negócios. Tinha aí uma de suas principais fontes de
lucros e era imprescindível que o controle sobre a preciosa mercadoria que
vendia fosse intenso. Fugidos uns negros que lhe pertenciam, o comerciante não
titubeara, procurando os serviços da Jácome. E a feiticeira, ao tratar novos
serviços, dava conta dos sucessos que tivera em outras vezes, listando seus
clientes importantes e alardeando seus feitos. Assim informava que quando um
tal Antonio Padreiro a contratara para procurar um negro insolente há muito
fugido, “ela lhe respondeu que lhe desse o nome do negro porque ela lho faria
aparecer por sua arte (sem lhe declarar que arte, porém, diabólica) e que já
ela por sua arte fizera aparecer outros negros fugidos ao dito João Nunes,
cristão-novo, e a Francisco Madeira, e a Brás da Mata, moradores da dita
Olinda”. Combinado o negócio, “ele denunciante deu o nome do negro escrito em
um papel. E depois disso, daí a dois ou três dias, lhe respondeu que o dito
negro estava vivo mas longe, mas nunca houve efeito a vinda do dito negro”.
Nunes também conhecia e mantinha contatos com uma mulher
chamada Borges, “a qual dizem que veio do Reino degredada por feiticeira”,
“mulher seca e meã, e que tem um olho como piscado”.
O vigário também ouviu da feiticeira sobre um presente
especial que esta oferecera a João Nunes, e a gratidão que Nunes tinha para com
sua protetora: “em Lisboa, dera a João Nunes, cristão-novo mercador e morador
em Pernambuco, ora estante nesta cidade, um espírito familiar em um anel, o
qual ele tinha para ganhar em seus tratos e tudo lhe suceder bem e escapar dos
perigos, e não poder ser ferido. E que um dia, achando-a ele na dita vila, lhe
dera três mil réis em dinheiro e outras coisas, agradecendo-lhe tudo o passado”.
Outros denunciantes afirmavam que era fama conhecida de
todos que Arde-lhe-o-rabo, “mulher vagabunda”, “tinha conta com o diabo e com
ele dormia e travava”. A própria Maria Gonçalves confessaria seus pactos
demoníacos em uma conversa com Violante Carneira: “ela era feiticeira diabólica
e fazia feitiços com ajuda dos Diabos, e lhe mostrou uma chaga em um pé todo
inchado, e lhe disse que em certos dias da semana os diabos lhe tiravam daquela
chaga um pedaço de carne e que quando ela chamava os diabos, se lhe não dava
muita ocupação, lhe tiravam dali então da dita chaga carne”, e “ia ao pego do
mar de mergulho tirar certas cousas para fazer feitiços, e que com feitiços
sabia e fazia o que queria”.
Outra que acusava Arde-lhe-o-rabo era a cigana Tareja Roiz.
Denunciaria que a própria Arde-lhe-o-rabo dissera-lhe que “falava com os
diabos, e lhe disse que lhe daria uma mesinha tal que quem tocasse com ele a
outra pessoa, logo lhe fazia fazer quanto queria, e lhe mostrou uns ossos que
trazia metidos nos cabelos da cabeça, dizendo que eram de enforcados, para as
justiças não entenderem com ela”, e sabe que na Bahia é fama pública que fala
com os demônios.
Maria Gonçalves também alimentava rusgas e problemas com uma
certa Domingas Fernandes. Tanto que esta compareceu certa vez na casa de
Caterina Fernandes, sua vizinha, rogando para que esta desse um recado para a
Arde-lhe-o-rabo: “que se ela lhe não havia de fazer aquilo que a não enganasse
e lhe tornasse o que lhe tinha dado”.
O padre Baltasar de Miranda também informaria ao visitador
que, havia cerca de quinze anos, em Ilhéus, se murmurava de uma mulher que
tinha fama de bruxa. Estando certa vez esta mulher na casa do padre, “fez uma
experiência que lhe tinha ouvido, que levantar o ferrolho da porta para cima e
estando assim levantado e saindo outras pessoas para fora, a dita mulher
cometeu algumas vezes a saída para fora, e chegando ao meio da porta que estava
aberta, parava de maneira que não podia sair”. Na mesma noite, continuava o
relato de nosso padre, “veio um gato grande pela porta dentro e saltou na candeia
e apagou a candeia, e quando o acudiram, acharam um menino, seu irmão, pagão,
nascido de cinco ou seis dias, embruxado, com a barba chupada e, em acabando de
o batizarem, morreu. E ouviu dizer que ela queria deixar o mesmo ofício de
bruxa antes de morrer a uma sua filha”.
Pequenos problemas do dia-a-dia também procuravam soluções
nas mágicas que prometiam dar fim às dificuldades.
Enfim, usava-se feitiços para tudo: sarar ou agravar
doenças, salvar vidas ou matar, conseguir ou recuperar amores, resolver
dívidas, desvendar roubos, e quaisquer outros problemas que se julgasse de
difícil resolução sem a recorrência ao sobrenatural. Nada que já não ocorresse
na Europa Ocidental, sem descartar Portugal, há séculos, onde já haviam sido
experimentados e aprovados antes de serem conhecidos no Brasil – várias destas
mulheres e homens acusados de feitiçaria, como vimos, vieram do reino, por
terem sido acusados, lá, das mesmas práticas.
A manifestação do baixo corporal nas práticas do dia-a-dia
distanciava ainda mais a fé brasílica do formalismo católico. Humanizados, os
representantes do catolicismo faziam parte da realidade colonial e ganhavam
órgãos e corpo.
De todos os lados repercutiam na colônia sinais de uma fé
pouco afeita ao rigorismo esperado pela Igreja. Misturados ao tempo e à
distância sangues e experiências, vinha à tona uma religião mais amena quanto
aos rigores - embora de uma religiosidade vibrante -, um catolicismo popular,
equipado de visões heterogêneas, em que eram destruídas as fronteiras entre o
sagrado e o profano, entre o bem e o mal, entre o puro e o impuro, entre o
popular e o erudito, e entre Deus e o Diabo: “universo em que maneiras
descompostas, riso e até mesmo brincadeiras licenciosas podiam conviver com
religiosidade”; em que substratos de antigas práticas supersticiosas e
populares enraizadas no velho continente ganhavam novo vigor e dimensão no
trópico. As práticas de feitiçaria, como todas as demais representações de
religiosidade e da tentativa de aproximação entre o mundo dos homens e o mundo
do sagrado, fazem parte deste imaginário.
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