Uma característica básica e fundamental de toda
espiritualidade, crença e religião é a existência do culto aos ancestrais. Eu tive
a oportunidade e a felicidade de encontrar um livro muito esclarecedor sobre o
culto do Egungun, um culto desenvolvido pelas religiões da Diáspora Africana.
Com a autorização da editora, eu citarei apenas alguns
trechos pertinentes para consolidar o conceito de que o culto ao ancestral é um culto familiar, fator imprescindível para que haja uma tradição, uma comunidade, uma coletividade e uma sociedade.
O culto aos ancestrais Egungun elabora a ancestralidade
existencial, a convivência pautada e orientada por valores afro-brasileiros, ou
seja, sua cosmogonia; entendendo este valor como o fazer, o sentir, o emocional
lucidamente racional, o que torna possível a interação dos homens com a
natureza do cosmo.
Este plantar e colher valores são justificados quando, nos
festivais públicos Egungun, onde os terreiros, com seus calendários bem
organizados, nos dias e meses específicos do ano, destinados aos patronos da
religião afro-brasileira de culto a ancestralidade Egungun, vê-se os babá Egun
com suas roupas coloridas, que todos chamam
de pai, protetor e ancestral.
Todo legado milenar civilizatório é revertido e hábitos e sistemas
educativos, sejam eles institucionais, sejam eles de conduta e costumes domésticos,
os quais, nas residências, são chamados de cultura de base.
A tradição e a educação afro-brasileira são também uma
herança dos convívios, hábitos, costumes e recriações praticados por antigos
moradores e seus familiares, na grane mistura étnica afro-brasileira.
Na essência, a tradição do culto tanto aos orixás quanto aos
Egungun está diretamente vinculada à terra, a Onile, senhor do interior da
terra que contem os ancestrais, bem como ao seu assentamento, sendo obrigatório
em todo terreiro de Egungun.
Na casa de adoração aos antepassados falecidos, tem-se a
certeza de que, com as oferendas aos mortos, terão vida longa, para todos os familiares
e filhos do terreiro. Em dia de obrigação aos ancestrais, que é consagrado
também a Oya Igbale, são feitas oferendas e festas aos Egungun.
Muitos dos povos de nações africanas que foram implantadas
no Brasil, ainda hoje sobrevivem nas cidades e no interior, com um legado inconfundível
desses antigos povos. Das nações que seus seguidores se fixaram na Bahia, entre
o final do século XVIII e o inicio do século XIX, mesmo com a assimilação de
nações afro-brasileiras, os nagô/yoruba foram os que mais conservaram a
configuração africana original.
Isso significa dizer que sua ideologia, seus mitos, sua
cosmogonia, rituais e éticas próprias são voltados, ainda hoje, dentro e fora
dos terreiros, para os praticantes e iniciados com parentescos sanguíneos ou
não dos dirigentes, os quais convergem e comungam dos mesmos valores. Estes acreditam
nas mesmas divindades, sentenciam seu devir dentro da lógica hierárquica de
cada terreiro e, portanto, constituem um fazer e acontecer pautado nessa
herança, buscando sempre a vida grupal entre pessoas, pois agradar as entidades
e viver entre irmãos só é possível reinventando.
Vários símbolos e signos relacionados às manifestações
humanas estão estampados em todas as literaturas, orais, escritas, criadas e
reinventadas por todas as sociedades, em todo mundo. Literaturas escritas, na
sua maioria, definiriam fenômenos sobrenaturais, o sagrado, o divino e o transcendental,
assim como o conjunto de rituais de éticas de convivência que derivam dessas
crenças chamadas de religião.
O conceito básico e aceito sobre o fenômeno religião vem do
latim religio, religare, que denomina um sentido de viver notadamente pela
rigidez e pela precisão. Bem como ligar o ser humano a algo superior a si
mesmo.
O termo religião, palavra aportuguesada durante séculos, foi
usado na Europa pelos povos de língua latina. Termo desconhecido por outras
civilizações; reeleger, ligar um Deus a humanidade, ou religar o homem a um só
Deus.
O conceito etimológico de religião visto em vários autores,
tendo suas concordâncias e discordâncias, faz crer, independentemente da
origem, que, no conjunto da sociedade, a crença e a fé fazem a relação com o
Deus. Criam-se dogmas de conduta, narrativas que legitimam a criação do mundo,
dos seres vivos e da humanidade. Para cada sociedade, há uma forma especial de
cultuar suas crenças e suas divindades, estabelecendo uma convivência com
direitos e deveres e buscando a sobrevivência da humanidade nos seres humanos.
A experiência dos povos colonizados nas Américas,
principalmente os escravizados africanos e seus descendentes, tem demonstrado
que, do ponto de vista do crente, mesmo sem uma literatura específica, nem mesmo
um código escrito, a tradição se mantem viva através da linguagem própria dos
povos de matriz afro-brasileira. Este fenômeno de crer em algo sobrenatural, o
mito como verdade, os símbolos, signos e os rituais representam a tradição e o
legado cultural da ancestralidade como ancoragem primordial, em que existe a
ética da convivência entre seres diferentes, respeitando a alteridade própria,
cada um traz em si a sua origem ancestral, sejam, pelo menos amenizados pelo
respeito aos ritos, aos Orixás, aos mais velhos da comunidade e aos
antepassados Egungun. Os baba Egun dão sentido às nossas vidas, pais nossos que
se foram para o mundo do além, orun, e que, quando são solicitados, chegam e
respondem aos nossos pedidos e ansiedades humanas.
No entendimento da ancestralidade, a morte não representa
simplesmente o fim da vida humana, mas sim que a vida terrestre se prolonga em
direção à vida além-túmulo.
O que os resta entender, ou pelo menos divulgar com respeito
às tradições, é que sem a ancestralidade não somos nada, não nasceríamos se
nossos antepassados não permitissem, por isso, devemos a eles a nossa gratidão,
venerando-os e cultuando-os.
O culto à ancestralidade masculina Egungun da religião de
matriz afro-brasileira é a reconfiguração no Brasil do culto aos ancestrais
africanos e afro-brasileiros. As similaridades e identificações são muitas. A começar
pela linguagem. Tanto do lado do Brasil como na África Ocidental, a
ancestralidade é um dos princípios da tradição, tradicionalmente central e
básica, mesmo na contemporaneidade.
Obviamente, a base da tradição religiosa do afro-brasileiro
é a iniciação e o renascer em um novo patamar de relações na cultura familiar
comunitária. Seus antepassados ditam as normas da coexistência de uma existência
de um poder viver relacionando o seu mundo com o universo.
A entidade Olorun baba Olodumare, que dá o sopro da vida, é
o seu poder maior da existência humana. Olorun é o poder maior, junto às forças
superiores de outros seres sobrenaturais. Sua vida e sua palavra são valores máximos,
atrelados uma à outra. A palavra é a gênese de tudo o que relaciona a vida, o
axé, o principio de força e poder, o vínculo de participação e a dinâmica do
existir (força, ritual e mito). A palavra e a participação nos rituais comungam
para todo o universo conspirar no sentido positivo ou negativo; as oferendas e
o sacerdócio seguindo os caminhos designados pela tradição são sagrados e sua
palavra é lei.
O afro-brasileiro tradicional que cultua o legado da
tradição religiosa de matriz africana não figura apenas em sua memoria o seu
conhecimento; ele participa, comuna e distribui esse saber, socializando-o e
perpetuando-o para as atuais e futuras gerações, tanto no sentido físico,
presencial e material, como no mito da sua comunidade, no sentido amplo,
podendo ser visto e entendido, principalmente nos rituais. O sacerdote,
portanto, é modelo de dignidade na sua comunidade.
Compreender a ancestralidade afro-brasileira relacionada aos
cultos Egungun é tarefa complexa. É preciso participar, observar e vivenciar os
ritos em um terreiro, onde os antepassados estão presentes e sua presença é a
expressão máxima da crença e de perpetuação da fé. A presença de um ancestral é
certeza de emoção a todos aqueles que estão participando do rito. Existe um elo
entre o mundo dos vivos, ara-aiye, e o mundo dos mortos, ara-orun, e seus
efeitos são imediatos. Tudo é pergunta e resposta ao mesmo tempo; o sagrado é
designio de Olorun, pois Ele está presente em tudo que se faz. Atrás de todos
os respiradouros do mundo, existe a presença de Olorun. Na energia cósmica que
agrupa a fonte da vida, o cotidiano, o solitário e o totalitário no coletivo
dos seres humanos está também a presença do Senhor que tudo vê. Essa visão
totalizante, assimilada pelo individuo no grupo, é sua forma de ver e entender o
mundo.
A tradição é um poder dinâmico que se perpetua através da
repetição do ritual. Os mais velhos são auxiliados pelos mais jovens no culto e
ambos conectam-se aos valores sociais e morais. O afro-brasileiro de traição
não se satisfaz em viver apenas o cotidiano, e sim quer comungar e interpretar
o que criou e o que foi criado historicamente para todos, pois o mundo, na sua
lógica, é para ser vivido e servido por todos. É preciso vive-o intensamente,
espiritual e materialmente, pois tudo foi feito para todos os seres humanos usufruírem.
A lógica desse pensamento é um aprendizado para toda vida,
pela forte vivencia em comunidade-terreiro, experiência vivida desde criança,
sempre junto aos rituais; o individuo torna-se coletivo em várias iniciações
nos ritos. Os antepassados são guias, modelos, fazendo ter sentido o conceito
de comunalidade, de sociedade, tornando-os mais atentos às mudanças,
disciplinando-os e fazendo com que sigam o respeito aos mais velhos e à
hierarquia, afinal o afro-brasileiro de tradição é, acima de tudo, um individuo
consciente de sua ancestralidade e do que ela significa no seu dia a dia.
Fonte: Sobrinho, José Sant’Anna, “Terreiros de Egungun, um
Culto Ancestral Afro-Brasileiro”, EDUFBA, 2015.
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