quarta-feira, 13 de abril de 2016

A antiguidade do Deus Cornífero

Jason Mankey em sua coluna Raise the Horns, na seção de Paganismo do Patheos, publicou um texto interessante e provocante intitulado “O Deus Cornífero não é tão velho quanto você pensa”. O artigo de Jason merece ser mais bem explorado e esclarecido, porque ele comete muitos enganos e equívocos.
Jason diz que o Deus Cornífero é uma construção moderna, não antiga e embora tenha em seu DNA algo do Diabo, isto é um conceito moderno. Segundo Jason, os antigos não tinham um Deus Cornífero Universal, mas sim diversos Deuses que portavam chifres em suas cabeças. Deuses que serviam a diferentes necessidades e possuem identidades próprias que apenas tinham os chifres em comum.
Eu devo adiantar que discordo da ideia teosófica que “todos/as os/as Deuse/as são o/a Deus/as”, mas é a nossa crença no Deus Cornífero que é uma construção moderna. A definição do Deus Cornífero ser uma construção moderna entra em contradição ao colocarmos sua identificação com o Diabo, um conceito que surgiu durante a Idade Média. Quando comparamos o Deus Cornífero com os demais Deuses antigos que eram descritos ou representados com chifres, a comparação precisa ser devidamente contextualizada com a mitologia, do contrário estamos fazendo uma comparação conforme nossa visão provinciana.
Jason cita alguns dos Deuses antigos que costumam ser usados como referência ou como modelos, arquétipos, do Deus Cornífero e é precisamente em seus exemplos que ele comete alguns erros de interpretação.
Dois exemplos típicos são Cernunnos e Pan, Deuses que, Segundo Jason, são completamente diferentes. Embora eu concorde com ele, o argumento que ele apresenta não convence. Jason define Pan como o Deus do espaço selvagem, separado da civilização, tendo conexões com bodes e pastoreio, é um Deus da natureza, fertilidade, fecundidade, luxúria e sexualidade. Segundo Jason, Cernunnos jamais foi representado com um falo ereto [como Pan] e é um Deus da caça e da abundância. Jason chega a comparar e diferenciar os tipos de chifres que Pan e Cernunnos portam e isto é crucial, afinal isto tem muito a ver com a divindade, poder e majestade destes Deuses, mas não é porque possuem diferentes tipos de chifres que eles sejam Deuses diferentes, as diferenças entre os deuses tem mais a ver com sua origem e mitologia. Eu irei explicar Pan e Cernunnos, conforme o argumento exposto no artigo, para que o leitor possa perceber o equivoco cometido por Jason.
Segundo ele, Pan era um Deus de segunda categoria fora de Arcádia e um Deus, favorecido por alguns, mas que não tinha um culto massivo que o colocaria junto com as demais religiões majoritárias no Império Romano. Isso não é inteiramente verdade, quando colocamos Lupércio, Fauno e Silvano, as versões Romana de Pan, divindade indispensável nas celebrações da Lupercália, ou mesmo quando levamos em consideração a importância de Pan no Orfismo.
Quanto a Cernunnos, Jason alega que seu culto era menos ainda conhecido, tanto que seu nome aparece apenas em um registro arqueológico. O que é um contrasenso, pois Cernunnos está vinculado à cultura e religião do povo Celta, que praticamente dominou toda a Europa antes dos Romanos. Jason se equivoca quanto a seu registro arqueológico, que ele deve se referir ao Pilar dos Barqueiros, supostamente o único lugar onde aparece o nome Cernunnos, no entanto a imagem pode ser encontrada também no Caldeirão de Gundestrup, imagem que é a que é usada com mais frequência pelos Pagãos Modernos e mesmo assim estas não são as únicas ocorrências da presença de Cernunnos por toda a Europa Celta. Para arrematar, Jason não tem como afirmar que Pan e Cernunnos são totalmente diferentes pelas evidencias que ele apresentou levando em consideração a afirmação dele que seus cultos eram escassos, não é possível sequer diferenciar os atributos desses Deuses levando em consideração apenas um único registro arqueológico.
Jason comete um equivoco ainda maior quando inclui o Deus Dionísio na lista e apontar que este Deus não é o Deus Cornífero por ser raramente representado com chifres. Dionísio, assim como Pan e Cernunnos, é um Deus complexo de difícil compreensão e interpretação. Como eu havia escrito em meu texto “Simpatia pelo Diabo”, a identidade de uma entidade ou Deus não depende do que acreditamos, mas sim da mitologia dessa entidade ou Deus. A origem de Dionísio vem da península da Anatólia e antes de ser conhecido como Dionísio ele era conhecido como Zagreu, um Deus com chifres.
Jason tenta estabelecer uma origem pressuposta do Deus Cornífero com as origens culturais e religiosas da Europa e até nisto existe um enorme problema. Quando falamos em Celtas, existem poucos registros sobre essa civilização, mas os Celtas eram uma coletânea de povos que tinham em comum apenas aspectos de linguagem e espiritualidade. Mesmo estes são descendentes dos Indo-europeus, uma coletânea de povos antigos que surgiram na região do Vale do Indo, onde fica o atual Paquistão. Dos Indo-europeus nós sabemos ainda menos de sua cultura e religião, nós apenas pressupomos algumas características em comum, então é espantoso que Jason alegue que os Indo-Europeus não tinham um Deus Cornífero, esquecendo que esta é a mesma origem da religião Védica e da cultura Hindu, onde Pashupati [um Deus que é semelhante demais a Cernunnos, Pan, Fauno, Silvano e Herne] é uma das manifestações do Deus Shiva.
Jason pula muito da história e desenvolvimento do Paganismo antigo, de sua sobrevivência na folclorização do cristianismo e de seu ressurgimento na Europa da Idade Média juntamente com o aparecimento das heresias. E talvez isto constitua um dos maiores erros de Jason e muitos pagãos modernos: descartam totalmente a história da Europa durante a Idade Média, como se a religião e a cultura popular não fosse resultado da assimilação e sincretismo de crenças antigas e originais com o cristianismo, como se o discurso oficial e jurídico da Caça às Bruxas não pertencesse a esse conjunto cultural pitoresco.
Neste blog o leitor pode encontrar diversos textos explorando a questão do Santo Ofício, de como a guerra contra as heresias passou a ser uma caça às bruxas, de como missas negras realizadas por nobres tanto refletem quanto influenciaram o conceito das assembleias de bruxas e de como o Mestre do Sabat foi identificado como sendo o Diabo. Para entender isso, nós temos que mergulhar nos processos do Santo Ofício, onde muitos contêm testemunhos voluntários, obtidos sem tortura e de como, mesmo no discurso oficial do Estado [secular e clerical], podemos encontrar ali rastros de uma autentica, resistente e sobrevivente religião antiga, vinculado às nossas origens europeias e pagãs.
Concluindo, o Deus Cornífero não é Cernunnos, Pan, Herne, Fauno, Silvano ou Dionísio. O mais provável é que estes Deuses sejam tanto filhos como pais deste que é o Senhor dos Mistérios da Bruxaria e Wicca tradicionais, tal como dizemos em nossas cerimônias, na Carga do Deus: “Eu sou o Velho e o Novo, eu sou o Pai e o Filho, meus nomes são incontáveis e o universo é a minha coroa. Busquem-me com Amor e descobrirás o Mistério”.

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