terça-feira, 18 de agosto de 2015

O Ideal Pagão

O valor de um ideal depende, evidentemente: (a) da sua concordância com a própria noção de ideal, (b) da sua utilidade (...); (c) da sua capacidade em estimular a acção nobre nos homens.
O ideal é a noção de que a Vida não basta. Pode considerar-se a vida como não bastando por uma de 3 razões: (a) por ser falsa, (b) por ser vil, (c) por ser imperfeita. São os modos [...] metafísico, ético e estético de encarar a vida e o ideal. São os conceitos budista, cristão (judaico) e pagão da existência.
Uma religião é um conceito do ideal comum a uma colectividade. Por ser comum a uma colectividade assume aspectos manifestativos (um ritual).
O ideal tem 3 formas: na sua relação com o universo - a Verdade; na sua relação com os homens - a Virtude; na sua relação consigo próprio - a Beleza. A Beleza é o Ideal Puro; é superior à Verdade e ao Bem porque é a própria substância do ideal, inaplicado e irrefracto. A Beleza é o que se prefere à vida, sem razão outra do que a preferência.
O ideal pagão é o mais justo e acertado de todos, porque, assim como a relação fundamental entre o homem e o universo é a sensação, o conceito metafísico mais acertado é o que baseie o universo na sensação: portanto, o Misticismo, cujo ponto de partida é a crença na realidade da sensação, a «crença na sensação» (mais curtamente). Como a essencial relação entre os homens é a sociedade, a sociedade, em que vivemos, a essencia da virtude está nas virtudes familiares e políticas. Como a essencial relação do ideal consigo próprio é o de ser uma afirmação de que a vida não satisfaz, a noção mais absoluta e pura do ideal é a de que a vida é imperfeita, se se considerar as razões porque o é , se é por ser falsa, se é por ser vil, se por outra qualquer. Assim o ideal pagão, a que estas 3 formas correspondem, é o mais certo e justo de todos.
[Ricardo Reis/João Pessoa]
Não somos, na verdade, neopagãos, nem pagãos novos. Neopagão, ou pagão novo, não é termo que tenha sentido. O paganismo é a religião que nasce da terra, da natureza direitamente — que nasce da atribuição a cada objecto da sua realidade verdadeira. Por sua própria natureza de natural, ele pode aparecer e desaparecer, mas não mudar de qualidade. «Neopagão» é um termo que tem tanto sentido como «neopedra» ou «neoflor». O paganismo aparece com a saúde, desaparece com o adoecimento, do género humano. Pode estiolar-se, como uma flor se estiola, e morrer, como morre uma planta. Mas não toma a forma de outra coisa, nem é susceptível de formas diferentes da sua substância.
Nós, que somos pagãos, não podemos usar um nome que indique que o somos como «modernos», ou que viemos «reformar», ou «reconstruir» o paganismo dos gregos. Viemos ser pagãos. Renasceu em nós, o paganismo. Mas o paganismo que renasceu em nós é o paganismo que sempre houve — a subordinação aos deuses como a justiça da Terra para consigo mesma.
Um estudioso do paganismo não é um pagão. Um pagão não é humanista: é humano.
Aquele «paganismo» moderno, ou «neopaganismo», que não compreende os dias santos, mas sim os poetas místicos, nada tem de comum com o paganismo.
O pagão tem simpatia pela superstição, porque o homem que não é supersticioso não é homem; mas não sente simpatia pelo humanitarismo, porque quem é humanitário não é homem.
Para o pagão cada coisa tem o seu génio ou ninfa, cada coisa é uma ninfa cativa ou uma dríade apanhada pelo olhar; por isso cada objecto tem para ele uma espantosa realidade imediata, e com cada coisa ele está em convívio quando a vê, e em amizade, quando lhe toca.
O homem que vê em cada objecto uma outra coisa qualquer, que não seja isto, não pode ver, amar ou sentir esse objecto. O que dá a cada coisa o valor de ter sido criada por «Deus», dá-lhe o valor por o que ela não é, mas por o que ela lembra. Os seus olhos estão postos nessa coisa, e alhures o seu pensamento.
O panteísta, para quem cada coisa vale pela sua participação no todo, por igual vê uma coisa para pensar noutra, por igual olha para não ver. Não pensa nela, mas na continuidade dela com o resto do mundo. Como pode amar uma coisa quem a ama por um princípio externo a ela? A primeira regra do amor, e a última, é que a coisa amada seja amada por ser essa coisa e não outra, e amada por ser objecto de amor, não por haver «razão» para amá-la.
[Antonio Mora/João Pessoa]
Fonte: Arquivo Pessoa.

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