quinta-feira, 16 de julho de 2015

Quirino, o Deus do povo

Na mitologia romana, Quirino (o mortal Rômulo) era um misterioso Deus. Veja também Jano Quirino. De início ele foi provavelmente um Deus sabino. Os sabinos tinham uma povoação perto do futuro sítio de Roma, e eles chamaram um de seus sítios, em que eregiram um altar, a Collis Quirinalis ("monte Quirinal") após Quirino; aquela área foi mais tarde incluída nas sete colinas de Roma, e Quirino tornou-se um dos mais importantes Deuses do estado como a forma deificada de Rômulo, o fundador e primeiro rei de Roma. Seu nome deriva de co-viri ("homens juntos"); tão como, ele personificava a força militar e econômica do populus romano coletivamente. Ele também alertava a curia ("casa do senado") e comitia curiata ("assembléia tribal"), os nomes de quem são cognatos com ele próprio. A esposa de Quirino era Hora. Em arte, ele era representado como um homem com barba e com roupa religiosa e militar. Ele era às vezes associado com a murta-comum. Seu festival era a Quirinália, no dia 17 de Fevereiro. Quirino foi citado na Eneida, de Virgílio.

Se Quirino era de origem sabina teria que ser anterior a Rómulo e logo a lenda que faz de Quirino a deificação de Rómulo não estará senão a fazer, de forma mítica, justiça à história: Foi Rómulo que levou este Deus Sabino para Roma, possivelmente aquando do rapto das sabinas. Este episódio romântico da fundação de Roma fundamenta a tese antes exposta de que a trindade suprema do panteão capitolino reflecte a realidade sociológica de uma cidade que foi de início um quartel sem bordel.

Portanto, quando Enio exalta Rómulo como rei bom e benemérito por exelência estava já a acender a fogueira da exaltação política onde Georges Dumézil ser viria a queimar porque foram os próprios clássicos que quiseram enfatizar o papel de “povo eleito” dos romanos com a criação do mito fundador de Rómulo transformado num semi-deus da tríade do Quirinal ao faze-lo incorporar o Deus Quirino. E assim apareceu entretanto a tríade arcaica romana venerada no monte do Quirinal que poderia ter sido mais poderosa do que a capitolina e que seria composta por Júpiter, Juno e Quirino.

O que sabemos sobre o Deus Quirino é mais mito do que lenda que pouco ou nada tem de confirmação histórica. No entanto muitas especulações tem sido feitas, precisamente em torno da tríade do Quirinal suposta mais arcaica que a capitolina ou pelo menos mais original.

No seu opúsculo “Jupiter, Mars, Quirinus et Janus”, Georges Dumézil ataca a proposta, aliás interessante, do professor da Faculdade de Direito de Dijon com uma tareia teórica de tal modo severa que se fica com a sensação de que a história mítica é uma ciência mais exacta do que a matemática e a mitologia uma disciplina tão bem certificada como o catecismo católico.

Claro que Georges Dumézil parte do pressuposto que a língua sabina era muito diferente da latina mesmo no caso de coabitantes dos mesmo montes, que esta era Úmbria mais precisamente Osca e que nunca poderia ter tido um Deus chamado Quirino porque não tinham o grafema qu*. No entanto tinham, como os gregos, o K e vários U e então quem pode provar a Dumézil que a grafia autenticamente sabina de Quirino não seria *Kyrinus, á boa maneira helénica, aliás?
M. Paoli néglige enfin le fait, assuré par l'analyse de l'homologue ombrien Vofîonus qu'ont donnée MM. Pisani1 et Benveniste, que Quirinus porte un nom bien latin, issu de *couirinos, et que, dieu du *couiriom ou des *couiriai (curiae), il a une valeur non pas ethnique, mais sociale; -- Jupiter, Mars, Quirinus et Janus”, Georges Dumézil.

Obviamente que ao chegar a este ponto a argumentação a Georges Dumézil deixa de ser científica para ser tipicamente ideológica e politica. Na verdade, a teoria da trifuncionalidade indo-europeia é uma ideologia fascista encapotada de cientificidade e de tipo racista que tem contra ela o argumento básico de que se fosse um facto sociológico arcaico estrutural estaria patente em toda a história europeia antiga e não apenas na medieval e não teria sido preciso a perspicácia delirante de Dumézil para descobrir que a estruturação mitológica das trindades arcaicas procuravam difundir na sociedade a organização social ideal dos povos indo-europeus quando a mais bem organizada das sociedades antigas, a egípcia, era piramidal e usava as tríades divinas apenas para demonstrar que esta se baseava na evidência socialmente empírica de que a unidade social fundamental é a célula familiar composta por pai, mãe e filhos. Por outro lado as tríades arcaicas pré patriarcais, suspeitas na Tridivas arcaicas das culturas de origem egeia e cretense, eram baseadas nas três idades da vida da mulher: Mãe > avó, mãe > filha e filha > neta.

E quando se pretende demonstrar o indemonstrável duma tese cujo suporte fundamental é ideológico pode chegar-se ao extremo da falta de rigor afirmando:
Quando se conhece o panteão, ou o essencial do panteão, de outras cidades itálicas, verifica-se que ele se adapta sem esforço ao quadro trifuncional. Em Iguvium, antiga cidade religiosa dos ûmbrios, na Itália central, textos (as Tábuas Eugubinas) deram a conhecer o grande ritual durante o qual são adorados três Deuses, denominados colectivamente Grabovii, e os seus comparsas respectivos: um é Júpiter, o segundo é Marte, o terceiro chama-se Vofionus, do qual se deriva o nome, em virtude de uma análise fonética rigorosa, conforme ás leis do úmbrio, de um *leudhyon-, do radical do alemão Leute, «as gentes», próximo sem duvida pelo sentido do latim (aparentado também) liberi, «os homens livres» (P. Kretschmer). é o equivalente de Quirinus.

Se for possível navegar nos mares prosaicos da fonética de Vofionus a *leudhyon- sem nos afundarmos em passagens estreitas intermédias, que o autor nem sequer se atreve a enumerar, é porque a fonética não é de facto uma ciência radical com vagas muito grandes, pois qualquer um ali pode surfar à vontade, e tão aleatória que chega a bastar a intuição para encontrar analogias étmicas inaudíveis como é o caso de *leudhyon-.

Pelo contrário, o mais plausível é até que o nome da tribo dos Grabovii seja uma evolução de *Karbowis, literalmente os bois ou os boieiros de *Kar (tal como os Deuses sumérios eram representados como touros). Por isso é que o seu Deus tutelar seria Vofionus, “literalmente o senhor boi”. A troca dos bês pelo vês terá sido uma pecha linguística arcaica cretenses que teria sido partilhada tanto pelos falares nortenhos lusitanos particularmente minhotos como por alguns dilectos itálicos.

A afirmação é mais dogmática e inexplicável do que a teoria da consubstancialidade da Santíssima Trindade que incendiou o mundo quando Ário colocou um i em homoousios transformando a igualdade divina em mera semelhança.

Se a impiedade já era apanágio dos cépticos racionalistas clássicos ainda mais o tem sido com os positivistas e ateus modernos.
Ao procurar saber alguma coisa mais sobre Vofîonus ficamos impressionados com o poder profético da hermenêutica do trifuncionalismo porque a pobreza informativa sobre os Deuses Grabovii é tanta que os torna quase inefáveis.

Entretanto vão aparecendo outras entidades divinas: Trebo Giovio, Fiso Sancio; Fisovio Sancio (Fisovius = Fiducius), Tefro Giovio, Torsa Giovia, Hondos Giovios, Marte Horse, Hondos Çerfios, Çerfos Martios, Prestata Çerfia, Tursa Çerfia, Marte Hodie, Giove Pater, Puemonos Popricos > Vesuna.
Trebo / Tefro Giovio indicia um Deus que na Lusitânia foi Trebapolo e que estaria relacionado com os trovões.
A suspeita com que se fica é a de que, de acordo com a tradição da Úmbria, o nome de Jove seria um mero epíteto dos Deuses das tempestades que na tradição anatólia tinham o nome da cidade que os adorava.
Obviamente que o senso comum parece identificar Pomona com os pomos e Epona com os póneis e do mesmo modo Bofiano com os «bofes» dos bois mas o mais sensato é pensar que aconteceu tudo ao contrário. De resto, por esta lógica os Grabovius seriam todos Deuses boieiros já que seriam seguramente taurinos com a única diferença de que os bois de Vofîonus eram brancos como os que pertenciam a Neptuno.

Assim sendo não sabemos de a divindade Úmbria seria Vofîonus, Wofine, Vofione ou Vufiune. Nem sequer sabemos se seria masculina ou feminina. De facto, tudo aponta para que se trate de uma Vaca Sagrada cujo nome mais arcaico seria *Kaukina, variante da suméria Damkina, esposa ou mãe de Enki, e que pode ter evoluído para Anat / Atena.
Em Coptos, no antigo Egipto, Ka-hedj (alma brilhante) era um touro branco dedicado ao Deus Min, que representava a energia cósmica, ou seja, sem qualquer relação com a 3ª função de Dumézil.
Bom, mas Dimezil entenderia que o Egipto, se bem que de cultura muito mais arcaica, ou por isso mesmo, não saberia diferenciar o clero da nobreza e esta do povo e, ainda que bem organizada e piramidal não era de cultura indo-europeia. Concedamos então que Vofionus / Bovião poderia ser Ka-hedj mas não era o touro branco de Min mas o boi Ápis que, apesar de negro tinha um triângulo branco na testa e que tinha um culto funerário osiríaco de grande popularidade nacional!

Tanto pela etimologia como pela semântica podemos fazer correlacionar Vofionus / Bovião tanto com o boi Ápis como com Anubis que era reconhecidamente Apolo Liceu o Deus que por ter um gado de nuvens, que Hermes roubou, era boieiro também, ainda que descuidado. Ao identificar Vofionus / Bovião com um Deus jovem e viril como Apolo ou Zeus Velchenos podemos estar no caminho certo confiando nos falares ibéricos a polícia é «bó-fia» quando incomoda a «má-fia» calão de que ninguém sabe a etimologia por não ser termo digno de erudição mas que por isso mesmo será primitivo, rústico e arcaico. Mesmo assim, sendo a «bófia» um conjunto de «bofes» e estes jovens másculos e adultos derivará a sua origem do arcaico culto esquecido a Vofionus / Bovião.

Seja como for, neste périplo especulativo pelas cercanias etimológicas de Vofîonus ainda não encontramos a sombra nem de Quirinus, nem de Janus, nem de nenhuma função de particular peculiaridade popular que se pudesse encaixar, nem que fora à podoada, no mito dumeziliano da trifuncionalidade que se de facto fosse essencial à estruturação do pensamento mitológico indo-europeu teria deixado marcas indeléveis nos panteões conhecidos e que os clássicos já teriam identificado há muito! Se mais nenhuma objecção houvesse contra a banalidade inútil das teorias de recorte fascista de Georges Dumézil bastaria referir que no único exemplo na mitologia clássica que poderia servir de prova se esvai depois duma análise crítica superficial.

Na falta de provas arqueológicas decisivas a análise da verdade sobre a realidade do Deus Quirino deve seguir as linhas das diversas propostas feitas até hoje de acordo com a lógica da razoabilidade.
Quirinus não é de facto um mero epíteto de Marte mas é duvidoso que seja menos belicoso do que este.
O facto de Quirinus ter desaparecido praticamente de cena e de não fazer parte do panteão clássico tem deixado desde a antiguidade a suspeita de que ele nunca terá sido um Deus autónomo mas um mero epíteto de um Deus guerreiro como Marte. No entanto, alguns historiadores gregos conseguiram identificar o latino Quirino com o grego Eniálio.

Quirino é de facto a sobrevivência do Deus *Kaurano postulado noutras reflexões sobre os antigos Deuses da caça e guerra dos povos neolíticos egeus e anatólios. Pode ter sido Crono, o arcaico Deus grego da segunda geração, que na Itália era Saturno e que terá feito parte da tríades capitolina em vez de Juno.

Marte Gradivus era o Deus das marchas guerreiras por ter sido o Deus solar *Kar de que derivou também Car-io-ceco ou Marte Carioceco que era o Deus lusitano da guerra. Tal como os Gra-bovios seriam os bois de *Kar como eram os bois do gado de Apolo.
Embora se suspeite com boas razões que Marte nunca tenha tido o epíteto de Silvano e por isso as inovações a estes Deuses revistam a forma de Marte Silvano por mera perda da > de separação a verdade é que o simples facto de a aceitação de um culto particular a Marte > Silvano ter tido livre curso significa que havia boas razões para acreditar no lado pacífico de Marte enquanto guardião da agricultura.
De resto, na Roma antiga, Belona era a Deusa da guerra herdada do tempo do matriarcado como Minerva e Marte era inicialmente um Deus agrícola ligado à fertilidade da terra. Pelo menos assim foi na sua origem etrusca.

Por outro lado, é duvidoso que Quirino, enquanto derivado do culto do Deus *Kaurano, não possa ter sido o Deus guerreiro dos sabinos.

Claro que temos pena de não ter tido acesso aos indícios de que Quirinos teria sido um antigo Deus do cereal dos latinos, como Dagon teria sido dos povos egeus, mas aceitemos que era assim no caso de todos os jovens Deuses activos do mundo arcaico: guerreiros por tradição paleolítica e agricultores incipientes por estarem a começar a revolução do neolítico. Quando Rebecca A. Allen afirma que “Quirino é simplesmente uma das muitas faces de Marte, cuja origem etrusca, como Romulus, foi ensombrada por influências estrangeiras e tão alterada que as suas intenções originais são quase imperceptíveis” lamentamos também que seja quase tudo evidente menos a possibilidade de Quirino ter sido uma entidade autónoma e neste caso de origem não etrusca mas possivelmente sabina ou de qualquer modo centro itálica de arcaica origem pelágica ou egeia.

Dionísio de Halicarnasso, escreve um dos vários mitos sobre Quirino. Durante um festival de Sabino ao Deus Quirino, uma rapariga de linhagem nobre dançou em honra do Deus. Ela foi inspirada pelo Deus e entrou no santuário de onde ela surgiu emprenhada por ele. Ela deu à luz um filho, Módio Fabidius que quando crescido se distinguiu por façanhas guerreiras. Ele decidiu fundar uma cidade e reuniu um grupo de companheiros. Depois de viajar uma certa distância, eles descansaram e neste lugar fundou uma cidade a que deu o nome Cures.

Dionísio de Halicarnasso, cotejando Varro, escreve que o nome de Quirino deriva de Cures, de cuja cidade ele é reivindicado ser o Deus. E prossegue dizendo que Cures deriva da palavra Sabina de farpa ou lança, curis o que implica, assim, uma associação com a Deus guerra Sabino. Tito Lívio, Plutarco e Ovídio também incluem esta associação etimológica com Cures.

Obviamente que os argumentos pelo absurdo não se fazem ao modo proposto porque de histórias absurdas está o inferno da política cheio! De resto, como não sabemos se Palmer fala de Quirino, se de quirites e como as cúrias foram criadas depois do rapto das sabinas no preciso número mítico destas fazia sentido no meio de tanta política diplomática realística e pacificadora que o membros das cúrias fossem nomeadas a contento das sabinas que falariam uma língua que não seria muito diversa da romana uma vez que eram tribos vizinhas pelo menos desde a queda de Tróia, ou seja há mais de 400 anos.

Mas na verdade, não faz muito sentido fazer derivar Quirino da cidade sabina de Cures, não tanto pelas razões apontadas por Palmer como indo contra o orgulho nacional emergente dos romanos, mas pela incoerência dos que o invocam a partir de um mito que torna tal pretensão impossível. Se a jovem sabina foi engravidada por Quirino de quem teve um filho que veio a fundar a cidade de Cures, Dionísio de Halicarnasso pensa mal quando postula que esta cidade veio a dar nome a Quirino, pai do fundador da cidade de Cures.

Estamos a falar de assuntos que começaram a ser registados por volta do 3º século antes de Cristo e que por isso não justificam tantas divergências fonéticas. A existência de Juno Curitis parece por água na fervura dos delírios etimológicos em volta do termo dos quirites.

Se a cidade de Faleri era o centro de um grande culto a Minerva que os romanos levaram para a sua cidade como Minerva (Capta) é possível que tivessem levado também aquela que era a patrona de todas as cúrias, Juno Curitis, o que deixa a suspeita de que a tríade que ali era adorada seria à maneira cretense exclusivamente feminina formada por Minerva, Juno > Curitis, sem qualquer espanto porque esta última é obviamente Perséfone / Corê que noutras circunstâncias pode mesmo passar por Atena Core. Juno Curi-tis tinha como parédro Jano Cúria-tius, literalmente o Deus das cúrias o que confirma que inicialmente este Deus estava casado com Juno...porque era a forma mais arcaica de Jove.
Do mesmo modo, Quirino seria a versão masculina de Curtis e por isso mesmo uma variante de Pluto, um “Deus menino” dos infernos do Kur sumério e Deus que está no fundo de toda esta etimologia desde *Kar, do lusitano Carioseco, de Curitis e de Quirino.
Um aspecto que importa relevar é que a etiologia italiana confirma a persistência de arcaicas tradições cretenses como sejam, neste caso, a de um “Deus menino” do amor do vinho e da guerra e que na qualidade de Zeus Velcheno seria simultaneamente Deus do céu, do mar e dos infernos subterrâneos antes de se diferenciar nos respectivos Deuses olímpicos. Obviamente que tanto Juno Curitis das cúrias romanas como Quirino Deus dos lanceiros sabinos, os quirites, permitem esclarecer a raiz da tradição cretense que evoluiu para os kouros gregos.

Na época lendária de Rómulo as cúrias eram dominadas pelos patrícios e por isso mantinham ainda a sua origem patriarcal anatólica. Do mesmo modo, na Grécia a Apa-turai revelava a festa da longa linha familiar do pai (apa) onde tur /kur expões a raiz cretense e taurina das cúrias bem como a relação do Deus Quirino com os infernos do *Kur, génese dos «curros» e «corrais» ibéricos.

Na verdade existe um grave equívoco na etimologia de Quirino baseada nas cúrias romanas. Se Quirino e quirites parecem derivar da mesma raiz quir- já «cúria» está longe de parecer ter a mesma raiz.
Não estamos seguros que a palavra «curia» se teria formado por mera sufixação como a romana cen-túria e a grega apa-túria porque de facto não teria tido na origem o significado de divisão administrativa como a centúria nem de festival como a apa-túria e estaríamos assim perante falsos cognatos.
O facto de os gregos conservarem um termo de formação igual deixa a suspeita de se tratar de um termo arcaico quiçá de origem micénica relacionado com o início da estrutura patriarcal da civilização mediterrânica depois da queda da talassocracia cretense.

No entanto, também não sabemos a etimologia exacta dos termos comparados. É certo que os romanos terão adquirido o termo «cúria» dos vizinhos tendo-o apropriado como se intuitivamente tivesse a semântica de uma reunião de dez famílias patrícias. No entanto se tivesse tido de facto esta origem etimológica por formação neologista seria uma *decaturia e nunca uma «cúria». Isso, no entanto não obsta que a analogia com a centúria não estivesse subjacente aos espíritos dos falantes como se de uma *decaturia. Na verdade, em todas as línguas muitas palavras novas são assim assimiladas e velhas palavras são de novo alteradas para ressoarem ao que melhor parecem ser sendo possivelmente esta uma das principais razões para certas etimologias arrevesadas ou de origem obscura.

Tudo aponta, sobretudo a realidade actual remanescente, que as cúrias se reportassem não aos seus membros, hoje cardeais, mas o local dos curros taurinos onde se realizavam as suas reuniões.
Corte no contexto das monarquias é o nome que se dá ao lugar onde o rei reside, seja permanentemente ou de passagem, assim como às pessoas da casa real e às que as acompanham. O nome parece derivar do latim cohors, que significa ajuntamento de gente em acto de guerra, debaixo do governo de uma pessoa.
É um facto que o conceito da corte portugueses resulta de uma semântica militar própria de uma colónia ocupada primeiro pelas legiões romanas e depois pelos visigóticos. Dito de outro modo, a fonética do termo é de origem militar mas a semântica evoluiu por ressonância com a cúria régia derivada da cúria católica e esta da romana.
Será então que os quirites pré-existiram às cúrias e ambos estes termos podem, por isso, ter uma origem etimológica diferente?

A constatação de que as cúrias eram patrícias e possivelmente de origem arcaica, ou pelo menos micénia, exclui a possibilidade, aliás lendária, de que estas tenham sido criadas por Rómulo.
Como se viu o termo «cúria» é o único que foge à relação etimológica que é inegável entre Quinino e quirites. Por isso não é possível seguir Robert E.A. Palmer na sua consideração de que o hipotético *co-viria está relacionado com os quirites. Isso não significa necessariamente que a instituição dos quirites romanos sejam um instituto arcaico e autóctone de Roma. Pelo contrário, nada desaprova o que dizem os autores antigos romanos de que os quirites derivavam da cidade de sabina de Cures onde afinal mais não seriam do que boieiros ou forcados de origem sabina e adoradores de Juno Quirites e de Jano Quirino caracterizados por serem portadores de forquilhas e varas de ferrão ou «aguilhadas» de picar os bois chamadas curis por eles.

A «aguilhada», pela sua estrutura tem aspecto de ter evoluído tanto para a lança como para o pilo, arma de mão branca que fez a fama e a fortuna das milícias romanas.
A relação desta arma, curis dos quirites, como os curetes ou couretas de En-kur / Enki e deste com Jano Quirino são incontornáveis.

No entanto, é pouco credível que os quirites fossem apenas curenses.

A única maneira de salvar alguma historicidade da lenda da instituição das cúrias por Rómulo seria a de que terá sido este ou por essa altura que os direitos de cidadania romana, até então exclusivos dos patrícios curiais, começaram a ser dados ao quirites. No entanto este alargamento dos direitos dos patrícios não terá ocorrido sem resistência e Rómulo terá acabado por pagar um elevado preço com a sua morte estranha, suspeita e macabra. A reacção ideológica dos beneficiários da filantropia de Rómulo, que eram sabinos, foi a incorporação da alma deste herói lendário do rapto das sabinas no Deus sabino dos boieiros e guerreiros que era Quirino.

Sendo assim, o mais plausível é que o lendário Rómulo alargou o número de cúrias aos sabinos integrados na urbs romana adoptando, por respeito à tradição das sabinas raptadas, o costume de consagrar todas as cúrias a Juno Quirites aparecendo assim o jus quiritis que, contrariamente aos pressupostos de Dumezil, sempre foi aristocrático e não popular. O mito de um Rómulo benfeitor começado por Enio já na era republicana terá sido refundado precisamente para justificar a bondade da república romana que as constantes guerras civis parecia não confirmar.

De facto, a inscrição úmbria covehriu- de Veletri, foi sempre considerada de difícil tradução.
Em princípio, o rigor das leis fonéticas tem pouca utilidade na análise linguística de falas desconhecidas, de línguas mortas ou muito antigas, mas obviamente que no caso de línguas recentes e bem conhecidas a fonética é quase tudo no estudo da sua evolução linguística.

Quando Bernard Sergent trata da génese e da expansão da cultura indo-europeia, abordando a organização socioeconómica, as instituições, e analisando em pormenor as suas raízes linguísticas e estabelece no livro “as Primeiras Civilizações (Volume III - Os Indo-Europeus e os Semitas de Pierre Lévêque) que Quirinus provem de *co-vir-inos está possivelmente a forçar a etimologia para provar a sua tese de ser este o Deus da terceira função, e por isso um Deus de paz ou, no mínimo, um Deus guerreiro de tempo de paz e armistício.

No entanto a equação *Co-vir-inos = co + vir-inos é redundante e desnecessária e tem o inconveniente de ser uma forma composta que teria que ser recente, obedecer à derivação linguística latina bem conhecida para ter a antiguidade adequada para fazer parte do mito fundador de Roma muito posterior à idade heróica dos Deuses homéricos.

Esta tese só tem a seu favor o facto de ser politicamente correcta o que incorre na falácia histórica das “causas actuais”. É duvidoso que este princípio se possa aplicar sem as devidas adaptações a pessoas e comunidades de épocas passadas cujos preconceitos e modos de ver e sentir o mundo e as coisas eram completamente diferentes dos modernos. Os princípios da fraternidade republicana actual devem ser encarados com prudência ao analisar a república romana que nos tempos lendários de Rómulo ainda não existiam porque as cúrias eram formadas apenas por patrícios e por isso mais patriarcais que fraternais.

Outros tentaram ir mais longe no conceito de irmandade de cama e mesa grato aos anarquistas pós modernos refundando a gaicidade muito para além de Gaia e indo bem mais longe do que a fundação da homofóbica Republica Roma. De facto, a relação atribuída a E. Littré de que “o termo co-viri significaria literalmente um homem vivendo com outro” é possivelmente um abuso interpretativo ao gosto homo-erótico moderno. Por estes pareceres tomados nos seus termos mais plausíveis, os quirites seriam boieiros e compadres que andavam e viviam juntos como em certas castas guerreiras orientais aristocráticas que praticavam a pederastia iniciática e a fidelidade a cultos arcaicos à Deusa mãe. Os grupos iniciáticos que sobreviveram até mais tarde proclamavam-se descendentes de cabiros, curetes e coribantes. Assim sendo, é muito possível que os romanos primitivos fossem um quartel etrusco sem mulheres que para sobreviverem tiveram que raptar sabinas chefiadas por curiões. Nesta mesma linha desta tradição xamânica apareceram mais recentemente os «curas» das aldeias católicas.
Estes cabiros que viriam a ter em latim o nome de curios ou curiões seriam primitivamente curetes e é então que as dívidas ou esclarecimentos por causas segundas aparecem. Os equivalentes aos pupilos dos curiões latinos seriam entre os sabinos os quirites que segundo alguns autores derivavam de co-viri ("homens juntos") personificando a força militar do populus romanus. A sua messe de oficiais teria sido a curia (depois "casa do senado") onde se teria reunido a comitia curiata litralmente a *curetada ou "assembléia tribal" dos curetas.

Sendo assim, é Quirites (cidadãos) que vem de Quirinus e não a inversa porque, neste caso, como nos demais, a regra é sempre a mesma: são os Deuses que dão o nome às coisas que com elas se relacionam e só excepcionalmente acontecerá o inverso, e, neste caso apenas quando as coisas se transformam em atributos divinos!

Quirites também só pode ser o equivalente fonético do helénico koureta, que todos os cidadãos romanos seriam enquanto recrutas ou reserva disponível em tempo de paz, mas mobilizados em tempo de guerra nos exércitos solares de Kar.

De facto, todos os autores apontam Quirino como sendo um Deus da guerra e de origem recente em relação à fundação de Roma para a qual apela o mito.
Para Thomas Bulfinch, Quirinus “was a war god, said to be no other than Romulus, the founder of Rome, exalted after his death to a place among the gods.” Outros apontam-no como uma importação relacionada também com as vicissitudes da fundação de Roma.
Se Quirino seria o Deus dos curiões significando inicialmente senhor ou Deus kouro quiri-tes significaria o mesmo mas talvez no plural ou seja literalmente kouroi.

Na mitologia romana, Quirino era um misterioso Deus provavelmente de origem sabina que enquanto Janus Quirinus era também um epíteto de Jano com funções de Deus supremo das tempestades e da guerra. Os sabinos tinham um templo que lhe era dedicado no "monte Quirinal", que foi mais tarde incluído nas sete colinas de Roma. Por vicissitudes políticas de história de Roma Quirino tornou-se um dos mais importantes Deuses do estado como forma deificada de Rômulo, o fundador e primeiro rei de Roma. E é então que a retórica mítica e a pseudo etimologia se misturam. Se Quirinus era o Deus da guerra das sabinas raptadas passou a ser o Deus da paz dos futuros quirites filhos dessas mães sabinas pois que para Deus da guerra Rómulo, e a cidade de Roma, tinham já o seu Marte e depois...um Deus de mulheres, para mais de origem estrangeira e rival não poderia fazer grandes guerras!

A casta sacerdotal dos Salii Collini estava associada com Quirino enquanto os Salii Palatini eram dedicados a Marte Grã-divus, supostamente o que marcha para a guerra mas que teria uma origem menos retórica.
Os quirites ó kauretas (=> mancebos «recrutas») têm o mesmo significado funcional derivado do Cures latinos ou do Kauros Grego.

Relacionando exacta etimologia com o nome de uma outra epopeia relativa à guerra de Troia, a Kafiria, podemos ficar com a quase certeza de que este termo significou armada, nome seguramente herdado da época da talassocracia cretense na qual todos os guerreiros eram marinheiros, como mais tarde no caso dos vikings. Interessante é verificar que o nome do cabrito, animal do capricórnico Enki, o Deus dos marinheiros sumérios, prece ter etimologia por esta origem.
A mitologia releva dum esforço intelectual colectivo para por ordem no mundo das representações sociais pelo que dificilmente saberemos o que seria uma religião primitiva sem artifícios culturais! Quer isto dizer que Quirinus pode ter outra explicação nesta história. O mais plausível é ter sido o nome do Deus supremo dos Sabinos que, uma vez associado ao panteão romano, já que vinha no dote das mães sabinas raptadas, teve que descer de posição, perder a função marcial e passar a ser um Deus pacífico, agrário e de fertilidade, o que não seria difícil de entender pelas razões anteriormente expostas. Mas isso acontecia com Marte bem como com todos os “Deuses manda chuva” que ou trovejavam na guerra ou armavam tempestades em tempo de paz para fertilizar a terra e os campos. De facto, o Deus da terceira função romana aparece em cena por mera aquisição de ocasião!
Esta assimilação de Deuses supremos de povos associados ou conquistados teria inevitavelmente que multiplicar o politeísmo o que contribui para a confusão aparente dos panteões, sobretudo entre as grandes potencias culturais como foi o caso da Babilónia e, mais tarde, de Roma.

Depois, Khiron, nome do bom centauro grego, iniciador sexual e militar de jovens e semideuses tem um nome que se parece por demais com Quirino (Khirin) e ambos com o barqueiro das almas Caronte e, por este, com Crono!
Este encontro de Deuses marciais nas profundidades infernais dos cemitérios vem já dos tempos sumérios dos Deuses de Kur.
E não é de espantar pois nenhum Deus mandava mais gente amada para a paz tumular das necrópoles do que os Deuses dos exércitos!

Que deidades de personalidades tão diversas se confundam num mesmo étimo deixa a suspeita de que o politeísmo tenha sido, também, uma consequência da evolução linguística por mutações fecundas, primeiro, porque enriquecedoras nas variantes do nome de Deuses ancestrais e depois, na criação de novos Deuses a partir das variantes desses mesmos nomes. Este fenómeno linguístico, reportado a outras palavras, deve ter sido fundamental no enriquecimento semiológico das línguas. Dada a tendência natural para a conservação dos étimos como forma de resistência à dissolução dos significados no ruído de fundo da oralidade, o erro fonético, que, por ser necessariamente comum e anterior à escrita pode ter a origem mais diversa (dislexia, aliteracia, más práticas e facilitismo juvenil, contaminação entre dialectos, pressão cultural de línguas dominantes, modismos e neologismos e jogos de palavras, gíria ou calão e códigos secretos, etc), só aparece como neologismo desde que a ele possa ser associada a formação de um novo conceito!

A este propósito pode aqui introduzir-se uma reflexão sobre a dialéctica da evolução linguística verificando que as línguas actuais são a resultante da pressão conservadora negentrópica do saber dominantes contra a acção da entropia do “princípio do menor esforço” sobre a memória social, ou seja, da austera autoridade imposta pela economia social sobre tendência libertina da indolência individual. Obviamente que as línguas são mutáveis porque a fonologia o permite mas também porque as línguas, não sendo inatas, têm que ser aprendidas correndo o risco de o serem de forma errada.
Como códigos de construção por interacção social as línguas sofrem as vicissitudes da cultura e só existem substancialmente pela acção hipercorrecta dos gramáticos que constantemente têm que lutar contra as forças dissolventes da ignorância por deficiência congénita ou por erro de aprendizagem o que justificou a existência de vários tipos qualitativos de linguagem que já na Suméria eram identificadas como próprias de crianças e de mulheres em contraponto com a língua escrita factos que os gramáticos modernos dicotomizaram em língua erudita e popular.

Assim, a linguagem como código de transmissão da cultura enquanto memória do adquirido histórico entra nos jogos sociais envolvendo-se e perdendo-se nas querelas de poder e nas guerras religiosas gerando escravidões em nome dos Deuses e provocando revoluções por equívocos de linguagem. De qualquer modo a linguagem como a vida é sempre uma luta termodinâmica de produtividade neguentrópica em resultado da luta constante contra a força dissolvente da entropia sobre a memória cultural.
Mas, ainda assim, as variantes dos nomes de Deus acabariam por ser fecundas no plano linguístico e geradoras de novos Deuses no plano da mitologia pagã!

Por mais estranho que pareça Collina, antes de se transformar no genérico de pequeno monte da latinidade já era o monte que veio a ser o Quirinal o que não teria ocorrido por mero acaso.
Claro que nesta etimologia forçada o Proto-Indo-European não explica a queda do duplo «ele» latino e faz derivar um diminutivo em ina de um substantivo terminado em -en. Obviamente que Collina e colis derivam de uma forma de linguagem pré-romana que já se reportava para o culto de Deuses das montanhas que seriam antepassados de Kur-Ano / Quirino. Assim, na tríade do Quirinal tínhamos Jove, Deus pai do céu, Marte, Deus filho a fazer a guerra na terra e Kur-Ano > Crono / Quirino, Deus avô, destronado e ocioso no submundo. Por alguma razão se dizia que o monte do Capitólio teria sido dedicado a Saturno, porque este monte era romano como o Quirinal era sabino. Assim, em ambos os lugares se adorava o mesmo “Senhor do Monte” mas com nomes ligeiramente diferentes porque correspondiam a evoluções separadas do mesmo conceito a partir de uma cultura arcaica comum que nem era indo-europeia porque seria egeia ou cretense e que no caso das tríades latinas só aparenta dar razão à tese dumezileana porque os Deuses saturninos da idade de ouro eram deuses populares na medida em que eram fartos como todos os Deuses infernais e liberais porque tinham sido destronados e viviam ociosos.

Autor: Artur Felisberto.
Fonte: Numancia.

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