sábado, 30 de maio de 2015

Os sabbats portugueses

Como se viu até agora, apesar da existência da metamorfose, dos demônios familiares, dos pactos demoníacos, verbais ou escritos, da alusão a relações sexuais com o Diabo não ocorre, na feitiçaria colonial, menção aos famosos sabbats, tão comuns na Europa. Em Lisboa, entretanto, três escravos afirmam ter estado em reunião que, de certa forma, pode ser considerada como sabática. Se tantas práticas de raízes europeias persistiram no Brasil colonial, por que não o sabbat?
As reuniões costumavam ocorrer sobretudo nos campos da Cotovia e em Val de Cavalinhos. Numa evocação talvez das bacanais e de Dioniso, o demônio lhes oferecia vinho e passas. Os assistentes, quase todos negros, mediam forças entre si, corriam pelos campos em pendencias, cantavam canções de pretos. Lembrando o sabbat europeu, esfolavam um bode e comiam sua carne; depois, traziam a pele do animal sob os chapéus, a fim de se livrarem de cutiladas.
No universo imaginário, o prazer sexual se apresentava libertador e integrador, restabelecendo a identidade entre natureza e cultura que se fazia mais intensa em terras africanas e que, como tantos outros traços culturais, o tráfico desestruturara. Hoje, estudiosos da bruxaria consideram frequentemente que as práticas orgiásticas atestam uma nostalgia religiosa, um poderoso desejo de retornar à fase arcaica da cultura – época onírica dos inicios fabulosos. Em outras palavras, numa abordagem mais antropológica, o sabbat da Época Moderna violava regras então recentes: convenções sexuais e sociais que alicerçavam a construção da ideia de lar, família e organização social. Dai a preeminência dada a práticas sexuais heterodoxas: sodomia, incesto, promiscuidade, homossexualismo. Por fim, o sabbat como projeção imaginária revelava recônditos do inconsciente coletivo, nos quais a atividade sexual sem limites se configurava simultaneamente como o grande tabu da cultura e o supremo desejo, inatingível. Sabe-se o quanto a tradição cristã demonizou a sexualidade, considerando satânica qualquer pratica que, em outros contextos culturais, tinha importante significado ritual.
O sabbat, portanto, era antes uma forma presente no universo mental dos inquisidores do que no dos colonos. As confissões dos três escravos são as únicas referencias a participações em sabbat existentes no período colonial. Nas suas relações com o sobrenatural, nas invocações do demônio, os colonos mestiços manifestavam-se, de preferencia, através da possessão ritual de influência indígena e africana. O caráter coletivo e a presença do Diabo ou de espíritos muitas vezes malignos [ou, pelo menos, ambíguos e ambivalentes] levaram os inquisidores a verem o sabat nestas manifestações. Na realidade, tratava-se de algo bem diferente, localizado na raiz da umbanda e dos candomblés atuais: os calundus e os catimbós. Se fosse de fato válida a diferenciação entre feitiçaria e bruxaria com base no caráter individual da primeira e no caráter coletivo da segunda, poder-se-ia dizer que a bruxaria colonial residiu basicamente nos calundus e catimbós.
Fonte: O Diabo e a Terra de Santa Cruz - Laura de Mello e Souza, pg. 257 – 261.

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