quinta-feira, 28 de maio de 2015

O consorte das Vênus paleolíticas

Nas representações parietais, os animais mais freqüentes são o bisão e o touro, nestes vê-se uma segmentação em dois blocos: um que toma todo o corpo do animal, privilegiando as regiões de força/virilidade, o dorso e o sacro (características sexuais primárias – órgãos reprodutores); o outro, formado pela cabeça alongada e os chifres, que, como o corpo, têm inscritos os elementos de força – aqui vistos como arma de defesa ou ataque e, portanto, de virilidade. Como ocorria nas Vênus, vê-se a repetição de uma rima plástica que recupera o percurso temático-figurativo presente no consorte da deusa: a força-viril ou a pujança criadora e destruidora. Mas, ao contrário da rima “tríplice” percebida nas Vênus, a dos consortes é dupla – apresentando uma bipolaridade explícita - positiva/vida e negativa/morte -, pois ao contrário da Deusa, que prenunciava a criação e delimitava o desconhecido, o consorte traz inscrito em sua figuratividade essa oposição entre o criar (órgãos sexuais) e o matar (chifres).

A base sêmica comum a cabeça/chifre e a falo (região do osso sacro): extremidade + superatividade compõem o seguinte suporte figural: extremidade + superatividade + cilindricidade. Pois tanto o falo quanto os chifres podem ser figurativizados por formas cilíndricas, planas ou não. 

Diversamente das Vênus, o bisão ou o touro apresenta uma circularidade nas transformações sêmicas, ou seja, o lexema chifre, após as transformações, recai sobre o lexema falo e vice-versa. Ambos apresentam o mesmo percurso, só que inversamente, confirmando a leitura antropológica do consorte da Deusa como veículo fertilizador por excelência . Dessa forma, o círculo em que este se inscreve é caracterizado por: 

Chifre > bastão/flecha > falo > bastão/flecha > chifre 

‘chifre’ > ‘flecha’ > ‘falo’

Tanto o cilindróide ‘chifre’ como o cilindróide ‘bastão’/‘flecha’ têm em comum o aspecto retilíneo, liso e sólido, ambos caracterizados como objetos de perfuração e utilizados para defesa ou ataque, portanto, arma. Estabelecendo a passagem do ‘chifre’ , de semas extremidade + superatividade + cilindricidade, à ‘flecha’ , de semas extremidade + superatividade + cilindricidade. Ocorrendo também uma alternância do natural ao cultural, visto que a flecha é um objeto feito pelo homem, portanto, da esfera do humano, e não natural como o chifre. Compartilhando dos mesmos núcleos sêmicos e semas contextuais, a flecha e o falo parecem se opor por ser a primeira um objeto de perfuração, cultural, que gera a morte, ao passo que o segundo termo é um objeto de penetração, natural (humano/animal), que gera a vida. Mas essa oposição é superficial, pois tanto a flecha pode gerar a vida – alimento e proteção do homem – quanto o falo gera a morte – a reprodução humana como fator de destruição/caça de um maior número de animais e coleta de maior número de frutos, portanto, “morte” da natureza. Assim sendo, os termos chifre, flecha e falo assumem uma equivalência nos princípios de gerar e proteger a vida e também no perigo mortal que representam. 

A equivalência entre flecha/falo é reforçada por outra representação maciça das cavernas paleolíticas – as chagas/vulvas sangrantes sobre o dorso dos animais ou junto de falos; um dos exemplos mais originais é o encontrado na gruta de Fontanet: “num grupo de gravuras que compreendem vários bisões, vê-se, nitidamente gravada, uma estrutura vulvar simples sobre o dorso de um deles”. A vulva que abre o flanco do animal é um símile da chaga ou ferida feita pela flecha, do mesmo modo como o falo rompe o corpo feminino, “ferindo-o” e fazendo-o sangrar. 

O intercâmbio entre caça e cópula > flecha/chaga > falo/vulva se estabelece, segundo P.Lèvêque, por serem essas duas práticas geradoras de vida para a espécie humana e destruição/morte para a espécie animal; a caça mata o animal, enquanto a cópula (humana) põe em cena um aumento da população, gerando a necessidade de maior exploração do meio, criando um círculo de interdependência homem-natureza, que terá de ser equilibrado, organizado por regras rígidas para que o homem não esgote sua fonte de vida, destruindo a si mesmo. 

A escolha de animais portadores de chifres, fortes e agressivos para consortes da Deusa Mãe decorre dessa equivalência entre o falo e o chifre, esses animais cornudos assumem, na perspectiva paleolítica, uma dupla virilidade, portanto, são mais pujantes que os destituídos de cornos e mais competentes para fertilizar a grande-fêmea-terra.
Autora: Flávia Regina Marquetti
Obra: A Proto-figuratividade da Deusa-Mãe

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