quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Despertando do transe dominador

Durante a Segunda metade do século XX, as pessoas começaram a falar de uma revolução da consciência: de mudanças radicais na maneira de ver o mundo.
O mesmo período testemunhou mudanças importantes nas atitudes e comportamentos sexuais. Também ocorreram mudanças fundamentais na estrutura da família. E houve um ressurgimento do feminismo, com as mulheres do mundo inteiro contestando as relações e os papéis estereotipados dos sexos e os cinco mil anos da dominação masculina.

Todas foram mudanças importantes. No entanto, fazem parte de um drama muito maior, que só pode ser entendido dentro do contexto mais amplo da história moderna e da história da consciência. Como veremos, representam somente a última fase do nosso despertar gradativo – como se de um transe demorado e doloroso – dos efeitos embotadores da mente e do corpo de milênios de história registrada ou dominadora.

Na verdade, no Ocidente, essas mudanças na consciência tiveram início na Renascença e no final da Idade Média. Mas foram muito aceleradas nos últimos estágios da Revolução Industrial, que acarretou mudanças tecnológicas e econômicas maciças que forçaram mudanças importantes não somente nos hábitos de trabalho, mas também de pensamentos e de vida. No processo, muitas coisas que haviam sido ensinadas como inevitáveis começaram a ser reexaminadas e rejeitadas.

Se reexaminarmos a história moderna de uma perspectiva na qual as relações íntimas não são consideradas meramente incidentais, o que aparece é um quadro cada vez maior e mais realista. Vemos então que a consciência cada vez maior com que fazemos mudanças fundamentais na maneira como os homens se relacionam com as mulheres e em como os pais (e outros adultos) se relacionam com as crianças está inteiramente relacionada à consciência moderna de que as mudanças fundamentais nas relações econômicas e políticas são possíveis.

Por milhares de anos, a necessidade humana de conexão – de elos forjados pelo amor e pela confiança, e não pela força e medo da dor – foi desvirtuada e reprimida. Ainda assim, o anseio por conexão persiste. Somente nos tempos modernos, o forte anseio humano por conexão recomeçou a encontrar a expressão coletiva.

A mudança pré-histórica de uma orientação de parceria para uma de dominação impôs uma reestruturação fundamental da família. Para sermos bem-sucedidos nos esforços para inverter essa mudança, precisamos entender melhor como a construção social da família e de outras relações íntimas é um fator importante em como todas as relações sociais são construídas. Nossas relações mais íntimas são um fator importante na construção social de todas as nossas relações.

Na verdade, a maneira como vemos a nós mesmos e nossas relações com os outros não é algo moldado primordialmente na chamada esfera pública da política e da economia. Em última análise, como nos vemos em relação aos outros e ao mundo é amplamente moldado na chamada esfera privada de nossa família e em outras relações íntimas.

O progresso real só pode se dar quando as pessoas começarem a despertar do transe social. A aculturação, em vários aspectos, opera como a hipnose e o transe cultural do conformismo condicionou, durante muito tempo, as pessoas a aceitar, racionalizar e legitimar instituições injustas, lideranças opressivas e modelos de papéis e imagens distorcidos. Uma vez [que] nos tornemos realmente conscientes de como fomos aculturados, podemos aprender a transcender nosso condicionamento.

Se temos de mudar para uma organização social em que a necessidade humana de conexão afetiva deixe de ser distorcida e pervertida através de sua associação com a coerção e a inflição ou aceitação da dor, precisamos interromper a repetição desse tipo de dinâmica psicossomática. Precisamos paralisar a reprodução do tipo de mentalidade condicionada culturalmente que faz com que o abuso e a violência pareçam inevitáveis, ao mesmo tempo que os torna invisíveis.

A mudança pessoal, familiar e social envolve muito mais do que a percepção do que nos aconteceu quando crianças. Mas o conhecimento cada vez maior do lado oculto da infância teve um papel muito importante na revolução moderna da consciência.

Quando a revolução da consciência passa para o segundo estágio, as mudanças nas crenças, comportamentos e instituições foram aceleradas.

Uma vez [que] as pessoas se tornem conscientes das atitudes, comportamentos e relações doentias, podem, consciente e deliberadamente, mudá-los em qualquer estágio de sua vida. A construção social da sexualidade e a construção social dos papéis e relações dos sexos masculino e feminino estão inextricavelmente unidas e ambas afetam e são afetadas por todas as instituições.

Na medida em que nos libertamos cada vez mais do transe dominador milenar, percebemos que muito do que era visto como realidade de fato era socialmente construído – portanto, que pode ser desconstruído e reconstruído. Um fator decisivo para seguirmos adiante será não somente empreendermos a fundo nossa desconstrução, mas também deslocar a ênfase totalmente para a reconstrução – particularmente para a reconstrução das crenças mais arraigadas em relação aos sexos masculino e feminino, ao sexo e ao nosso corpo. Somente então teremos fundamentos sólidos para a mudança sustentável tanto na esfera privada como na pública. Se conseguirmos completar com êxito a mudança cultural de uma organização social e ideológica dominadora para uma de parceria, aí sim, veremos uma verdadeira revolução sexual – na qual o sexo deixará de ser associado com dominação e submissão para ser associado com a total expressão do poderoso anseio humano por conexão e prazer erótico. Será uma sexualidade que tornará possível expressarmos e experimentarmos mas completamente a paixão sexual como um estado alterado de consciência. Também acarretará o reconhecimento de que o prazer erótico está impregnado de uma espiritualidade tanto imanente como transcendente.

Riane Eisler, O Prazer Sagrado, Editora Rocco, pg231-258.

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