sábado, 5 de junho de 2010

O Espírito da religião dos Gregos Antigos

Admiramos as grandes obras dos Gregos: sua arquiteturam sua plástica, sua poesia, sua ciência. Estamos conscientes de que eles são os fundadores do espírito europeu - espírito que, por várias vezes, ao longo de muitas gerações, tornou a voltar-se em sua direção, por via de renascimento mais ou menos acentuados.
Sobre a natureza das idéias religiosas da Grécia Antiga, nada mais aprendemos além do que sabíamos, ou seja, o que ela não era. Não era do gênero da religião judaico-cristã. Pelo contrário, era justamente o que esta abominava, ou seja, politeísta, antropomórfica, naturalista, não de todo moral, em uma palavra, pagã.
Por causa da sedutora beleza das formas divinas, acreditou-se poder falar de uma religião artística, ou seja, de uma religião que no fundo não o era.
Os Deuses não podem ser inventados, nem concebidos, mas tão somente vivenciados.
A cada ramos da humanidade, o divino se revelou a seu modo, dando forma a sua existência e fazendo dele o que efetivamente devia ser.
A que se deve o desprezo pelo mundo divino dos Gregos?
A razão principal reside, naturalmente, na vitória de uma religião que se considera a única possuidora da verdade, de modo que as concepções de todas as outras só podem ser falsas e execráveis.
As grandes épocas do paganismo grego (e também do romano) forma indubitavelmente mais piedosas que as cristãs. Isto quer dizer que a idéia de divindade, do que ela nos dá e de quanto lhe devemos, então impregnava mais poderosamente a existência humana como um todo. O ofício divino e a vida profana não estavam tão completamente separados um do outro a ponto de caberem ao culto tão somente determinados dias, ou horas, podendo os assuntos mundanos, com seu regime próprio, ocupar à vontade, quanto espaço quisesse.
Mito e linguagem
Os mitos  outra coisa não eram senão a linguagem primordial dos espíritos, que só através de imagens e metáforas sabiam exprimir sua comoção diante das formas grandiosas da realidade universal.
A própria aparição de grandes poetas ensinou que o grande poeta, enquanto tal, é tocado pelo espírito do mito e de suas profundezas faz vir a ser a palavra vivente.
Os mitos, mais do que figuras ou similes para a expressão de experiências que os homens podem fazer a qualquer instante, constituem revelações do ser que tem seu próprio momento cósmico. Aproximar de nosso entendimento essas verdades primigênias era a aspiração de espíritos geniais que tratavam antes elevar-se a sua altura para escutar-lhes a linguagem.
Jacob Joseph Görres teve a força de atrever a falar de uma arcaica sabedoria do mito, sabedoria sagrada, herança de uma humanidade pré-histórica que ainda conservava uma orgânica comunhão vital com a natureza materna, assim recebendo dela uma percepção que, ao cortar-se este laço, teria necessariamente de interromper-se.
Na história da formação dos mitos, os embates e as potestades da cosmogênese não apenas se refletem como também seguem atuando.
A concepção equivocada
Por religiões míticas há que entender as politeístas. Aos homens de formação cristã (judaica e muçulmana) elas parecem carecer do sentido genuinamente divino enquanto unidade, transcendência, onipotência, onisciência e bondade infinita e, portanto, carecer da religiosa gravidade da adoração do Legislador, Juiz e Pacificador.
E deu-se que a doutrina no lugar de um autêntico estudo da religião propôs uma teoria acerca dos primórdios do pensamento humano e de seu desenvolvimento no curso dos milênios. Subentendia-se que os começos tinham de ser concebidos como os mais rudes possíveis.
A ciência prestou um grande serviço à teologia, com a prova cabal de que a crença nas incômodas divindades pagãs só era explicável pelos erros dos primitivos.
Magia
Por certo, não cabe negar que a verdadeira magia existiu e ainda existe. As fórmulas mágicas de alguns povos indígenas, combinadas a certas práticas, produzem efeitos que, de nosso ponto de vista, por força tem de parecer milagres. Para observadores atentos desde muito assinalaram que essas práticas por si só não são suficientes. Sua realização eficaz exige uma longa e árdua preparação e ainda uma disposição psíquica inata, hereditária em certas famílias.
Interpretação equivocada
Já é tempo de notar a enorme ingenuidade com que os pesquisadores das últimas gerações tem projetado no homem arcaico sua própria imagem. Assim como eles não conseguiam ver nos cultos mais antigos outra coisa que não primitivas operações técnicas, as imagens dos Deuses se lhes converteram em pálidas concepções pré-científicas dos fenômenos naturais que nos são também notórios e somente por nós vem a ser interpretados corretamente.
O fato de que, desde o princípio, a idéia de Deus devera pertencer a uma dimensão ontológica distinta de todas as noções de causa e efeito e jamais teria surgido na mente de um ser humano se o próprio Deus não se revelasse como tal não entra em linha de conta para os estudiosos, visto como para eles constitui um fato irrecusável que somente a religião moderna tem direito de falar em uma revelação divina.
O equívoco do arquétipo
Cumpre dizer uma palavra acerca da moderna interpretação dos mitos segundo a psicologia das profundezas. O próprio nome adverte que neste caso a suposta profundeza da alma humana deve substituir a da realidade cósmica.
Trata-se de um desvio perigoso. Pois esta psicologia do modo mais sedutor vem ao encontro do narcisismo do homem moderno.
Esta teoria ensina a desviar inteiramente a vista do mundo das coisas e olhar apenas para dentro, rumo aonde, segundo ela, na realidade se processa todo o mítico. Assim ela contribui, da maneira mais extravagante, para o empobrecimento do homem atual, que por via de sua ciência e de sua técnica está a ponto de perder o mundo todo pelo gosto de ocupar-se exclusivamente de si mesmo.
Afirma a psicologia profunda que imagens oníricas seriam tão semelhantes às figuras míticas que resultaria impossível rejeitar a idéia de um misterioso ressurgimento destas. Por isso deu-se-lhes o nome de arquétipos, imagens primordiais e acredita-se que elas se teriam conservado ao longo dos milênios em estado inconsciente, prontas a ressuscitar tão logo a alma precise delas. O mito autêntico está sempre cheio de espírito, não surge de nenhum sono da alma, mas sim do olho espiritual aberto ao ser das coisas. O sono e os sonhos estão abertos apenas ao que passa no interior do homem, ou ao que lhe toca pessoalmente e fechados às verdades do ser.
Em todo mito originário um Deus se revela junto com sua esfera vivente. O Deus, como quer que seja chamado e como quer que se distinga de seus semelhantes, nunca é uma potência particular, mas todo o ser universal na revelação que lhe é própria.
A psicologia das profundezas com todo seu modo de pensar pertence ao mundo oposto ao do mito. Ela impele o homem de voltar a si mesmo, apartando-o do espírito divino que irradia do universo patente.
Conceito de mito
Estamos acostumados a entender por mito uma história que ao pé da letra não pode ser verdadeira, mas é possível que encerre um sentido mais profundo.
O termo mythos (cujo significado não é outro senão palavra) originalmente não designa a palavra que fala do passado e sim a que fala do real.
Assim como os povos primitivos de hoje, as culturas antigas distinguem entre seus relatos fantásticos um grupo especial, não porque eles sejam especialmente prodigiosos, mas sim porque se revestem do caráter do sagrado. O mito propriamente dito de fato possui uma natureza incomparável.
O mito primordial e genuíno é inimaginável sem o rito, sem um solene proceder e um atuar solene que elevam o ser humano a uma esfera superior.
O rito não é de modo algum uma mera imagem do acontecer mítico, mas sim este mesmo acontecer, no sentido pleno do termo. Rito autêntico, sem mito não existe, assim como não há mito autêntico sem rito.
Estamos diante do protofenômeno da atitude religiosa. Seja como gesto, ato ou palavra, ela corresponde ao desvelar-se do ser sacrossanto da divindade. Assim ela se acha no centro de todo mito autêntico. Não é algo que se dá a pensar, mas sim a vivenciar.
Autor: Walter Otto
Fonte: Teofania; pág 17-44 - Editora Odysseus

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