terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A religião da cidade

A principal cerimônia do culto doméstico era um banquete, chamado sacrifício. Comer um alimento preparado sobre o altar foi, segundo parece, a primeira forma dada pelo homem ao ato de religião. A necessidade de se comunicar com a divindade era satisfeita por esse banquete, para o qual a própria divindade era convidada, recebendo a parte que lhe cabia.
A principal cerimônia do culto da cidade consistia também em um banquete semelhante; devia ser realizado em comum, por todos os cidadãos, em honra das divindades protetoras. O costume desses banquetes públicos era universal na Grécia; acreditava-se que a salvação da cidade dependia de sua realização.
Além desses imensos banquetes, onde todos os cidadãos se reuniam, e que não podiam ser realizados senão nas festas solenes, a religião prescrevia que cada dia houvesse uma refeição sagrada. Para isso, alguns homens escolhidos pela cidade deviam comer juntos, em seu nome, no recinto do pritaneu, na presença do lar e dos deuses protetores. Os gregos estavam convencidos de que, se esse banquete deixasse de ser celebrado por um único dia, o Estado ficava ameaçado de perder o favor dos deuses.
Em Atenas, a sorte designava os homens que tomar parte no banquete comum, e a lei punia severamente os que se recusavam a cumprir com esse dever. Os cidadãos que se sentavam à mesa sagrada ficavam revestidos momentaneamente de caráter sacerdotal; chamavam-nos parasitas; essa palavra, que depois se tornou pejorativa, começou a existir como título sagrado. Nos tempos de Demóstenes, os parasitas haviam desaparecido, mas os prítanes ainda eram obrigados a comer juntos no pritaneu. Em todas as cidades havia salas destinadas às refeições em comum.
Observando-se como as coisas se passavam nessa refeição, se reconhece perfeitamente tratar-se de cerimônia religiosa. Cada conviva tinha uma coroa na cabeça; com efeito, era costume antigo coroar-se de folhas ou de flores cada vez que se realizava algum ato solene de religião.
A refeição começava invariavelmente por uma oração e libações; cantavam-se hinos. A natureza das iguarias e a espécie do vinho que se devia servir eram regulados pelo ritual de cada cidade. Afastar-se o mínimo que fosse do costume seguido pelos antepassados, apresentar um prato novo, ou alterar o ritmo dos hinos sagrados, era impiedade grave, pela qual toda a cidade se responsabilizava diante dos deuses.
Esses costumes antigos dão-nos idéia do vínculo estreito que unia os membros de uma cidade. A associação humana era uma religião; seu símbolo era o banquete público.
Imaginemos uma daquelas pequenas sociedades primitivas reunidas, pelo menos os chefes de família, em uma mesma mesa, vestidos de branco e coroados de flores; todos fazem juntos a libação, recitam as mesmas preces, cantam os mesmos hinos, comem a mesma comida, preparada sobre o mesmo altar; no meio deles estão presentes os antepassados, e os deuses protetores participam da refeição.
Em todos os tempos e em todas as sociedades o homem sempre quis honrar seus deuses com festas, e estabeleceu dias especiais, nos quais o sentimento religioso reinaria sozinho em sua alma, sem distraí-la com pensamentos e ocupações terrenas. No número de dias que deve viver, estabeleceu a parte que caberia aos deuses.
Cada cidade havia sido fundada com ritos, que no pensamento dos antigos tinham por efeito fixar dentro de seus limites os deuses nacionais. Era necessário que a virtude desses ritos fosse rejuvenescida todos os anos por nova cerimônia religiosa; chamavam a essa festa dia natalício; todos os cidadãos deviam celebrá-la.
Vinha em seguida a festa do fundador. Depois, cada um dos heróis da cidade, cada uma daquelas almas que os homens invocavam como protetoras, passou a reclamar um culto; Rômulo tinha o seu, assim como Sérvio Túlio, e muitos outros, até a ama de Rômulo e a mãe de Evandro. Atenas, por sua vez, tinha a festa de Cécrops, a de Erecteu, a de Teseu, e celebrava cada um dos heróis do país, como o tutor de Teseu, Euristeu, Androgeu, e uma multidão de outros.
Havia ainda as festas dos campos, a do trabalho, a da semeadura, a da floração, a das vindimas. Na Grécia, como na Itália, cada ato da vida do agricultor era acompanhado de sacrifícios, e os trabalhos eram executados enquanto se recitavam hinos sagrados. Em Roma, os padres fixavam, cada ano, o dia em que deviam começar a vindima, e o dia em que se podia beber vinho novo. Tudo era regulado pela religião. A religião mandava que se podasse a vinha, porque afirmava que era impiedade oferecer aos deuses uma libação com vinho de parreira não podada.
Toda cidade tinha uma festa para cada uma das divindades que havia adotado como protetoras, e que eram muitas. À medida que se introduzia o culto de uma divindade nova, fazia-se necessário encontrar um dia do ano para consagrar-lhe. O que caracterizava as festas religiosas era a proibição do trabalho, a obrigação de se estar alegre, os cantos e jogos públicos.
O calendário não era outra coisa que a sucessão das festas religiosas.
Compreende-se que o calendário de uma cidade não podia assemelhar-se em nada ao de outra, porque a religião não era a mesma entre elas, e as festas, como os deuses, diferiam. O ano não tinha a mesma duração em duas cidades. Os meses não tinham os mesmos nomes; Atenas chamava-os diferentemente de Tebas, e Roma de modo muito diverso de Lavínio. Isso porque o nome de cada mês era tirado ordinariamente da festa principal que nele se celebrava: ora, as festas não eram as mesmas. As cidades não concordavam em começar o ano na mesma época, nem em contar a série dos anos a partir de uma mesma data.
Entre as cerimônias mais importantes da religião da cidade, havia uma que se chamava purificação. Celebrava-se todos os anos em Atenas; em Roma só se realizava de quatro em quatro anos. Os ritos então observados, e o nome que lhe davam indicam que essa cerimônia devia ter por virtude o resgate das faltas cometidas pelos cidadãos contra o culto. Com efeito, religião tão complicada era fonte de terror para os antigos; como a fé e a pureza de intenções de nada valiam, e como toda a religião consistia na prática minuciosa de inumeráveis prescrições, sempre se devia temer por alguma negligência, por alguma omissão ou erro, e nunca se tinha certeza de estar ao seguro dos golpes de cólera ou de rancor de algum deus. Era necessário, portanto, para tranqüilizar o coração do homem, um sacrifício expiatório.
Para ato dessa natureza, e de tal importância, duas coisas eram necessárias: uma, que nenhum estranho se introduzisse entre os cidadãos, o que perturbaria e viciaria a cerimônia; outra, que todos os cidadãos estivessem presentes, sem o que a cidade poderia continuar impura. Era necessário, portanto, que essa cerimônia religiosa fosse precedida pelo recenseamento dos cidadãos. Em Roma e em Atenas contavam-se os cidadãos com o maior cuidado; é provável que seu número fosse declarado pelo magistrado na fórmula da oração, e em seguida inscrito no relatório que o censor redigia sobre a cerimônia.
A essa cerimônia assistiam somente os cidadãos; mas suas mulheres, crianças, escravos, bens, móveis e imóveis, eram, de algum modo, purificados na pessoa do chefe da família. É por isso que, antes do sacrifício, cada um devia declarar ao censor o número de pessoas e coisas que dependiam dele.
Não havia um só ato da vida pública no qual não fizessem intervir os deuses. Como estavam sob o domínio da idéia de que os deuses ora eram excelentes protetores, ora cruéis inimigos, o homem jamais ousava agir sem estar seguro de seus favores.
O povo não se reunia em assembléia senão em dias permitidos pela religião.
Em Roma, antes de se abrir a sessão, era necessário que os áugures assegurassem que os deuses eram propícios. A assembléia começava por uma oração, que o áugure pronunciava e o cônsul depois repetia.
O mesmo acontecia entre os atenienses: a assembléia sempre se iniciava por um ato religioso. Os sacerdotes ofereciam sacrifícios; traçava-se depois um grande círculo, espargindo a terra com água lustral, e era dentro desse círculo sagrado que os cidadãos se reuniam. Antes que algum orador tomasse a palavra, pronunciava-se uma prece diante do povo em silêncio.
A tribuna era lugar sagrado; o orador só podia subir à mesma com uma coroa na cabeça, e durante muito tempo quis o costume que começasse o discurso invocando os deuses.
O lugar de reunião do senado de Roma era sempre um templo. Se se realizasse alguma sessão fora de lugar sagrado, as decisões tomadas seriam consideradas nulas, porque os deuses haviam estado ausentes. Antes de qualquer deliberação o presidente oferecia um sacrifício e pronunciava uma oração. Na sala havia um altar, onde cada senador, ao entrar, derramava a libação, enquanto invocava os deuses.
O senado de Atenas assemelhava-se nisto ao de Roma. A sala tinha também um altar, um lar. Antes de cada sessão realizava-se um ato religioso. Todo senador, ao entrar, aproximava-se do altar, e pronunciava uma oração.
Em Roma, como em Atenas, só se administrava justiça na cidade em dias determinados pela religião como favoráveis. Em Atenas, a sessão do tribunal era realizada junto a um altar, e se iniciava com um sacrifício.
Na guerra a religião era, pelo menos, mais poderosa que na paz. Havia nas cidades italianas colégios de sacerdotes chamados feciais, que presidiam, como os arautos entre os gregos, a todas as cerimônias sagradas inspiradas pelas relações internacionais. Um fecial, com a cabeça coberta por um véu de lã, de acordo com os ritos, tendo os deuses, como testemunhas, declarava a guerra, pronunciando uma fórmula sacramental. Ao mesmo tempo, o cônsul, em vestes sacerdotais, fazia um sacrifício, e abria solenemente o templo da divindade mais antiga e mais venerada da Itália, o templo de Jano. Antes de partir para uma expedição, reunido o exército, o general pronunciava preces e oferecia sacrifícios.
Depois de cada vitória oferecia-se outro sacrifício; essa é a origem do triunfo, tão conhecido entre os romanos, e que não era menos usado entre os gregos. Esse costume era conseqüência da opinião que atribuía a vitória aos deuses da cidade.
Assim, em tempo de paz como em tempo de guerra, a religião intervinha em todos os atos. Achava-se presente em toda parte, como que envolvendo o homem. A alma, o corpo, a vida privada, a vida pública, os banquetes, as festas, as assembléias, os tribunais, os combates, tudo estava sob o império da religião da cidade. A religião regulava todas as ações do homem, dispunha todos os instantes de sua vida, fixava todos os seus hábitos. A religião governava a criatura humana com autoridade tão absoluta, que nada lhe escapava.
Autor: Fustel de Coulanges - A Cidade Antiga - Fonte: Ebooks Brasil

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