quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Mulheres e Bruxaria

Falar ou escrever por contrários deliberadamente justapostos era, com efeito, comportar-se contenciosamente, assim como a antítese retórica era o modelo lingüistico para os que agiam com base na oposição em si. Este é um lembrete da identidade entre dizer e fazer. Em particular, reforça a idéia de que as ações de bruxas e a linguagem usada para descreve-las tem a mesma forma.
O significado desta escolha reside nos estreitos laços entre descrições da mulher “do contra” no princípio da Europa moderna. Mais especificamente o “epigrama divertido” nos encoraja a passar da contrariedade em bruxas à contrariedade em mulheres, e nos centrar, por um momento, na muito debatida questão da relação de Bruxaria com sexo.
Uma abordagem centrada na estrutura das representações de Bruxaria deveria ter algo a dizer sobre o assunto. Afinal, estamos lidando com a razão porque as coisas significam o que significam.
A insistente questão levantada pelo gênero das bruxas diz respeito à relação entre o que significava, no interior das culturas de perseguição às bruxas, acusar alguém de ser bruxa, e as condições mais amplas que parecem ter produzido pessoas “acusáveis”.
A resposta tem sido procurada não tanto em laços culturais específicos entre Bruxaria e comportamento feminino articulados no tempo, mas em transformações na situação social das mulheres que as marginalizavam e tornaram-nas suscetíveis a acusações de desvios. Argumentos sugerem como grupos de mulheres se tornaram tão anômalos em relação às normas sociais contemporâneas (fortemente masculinas) que facilmente atraíam acusações.
O que esses argumentos são menos bem sucedidos em mostrar – não podem mostrar isoladamente algumas considerações sobre o significado de Bruxaria nas culturas e questão – é porque as acusações deveriam se referir a Bruxaria e não a algum outro crime.
O problema é que não há vínculo conceitual que nos autorize a derivar a condição bruxa da anormal. O efeito é que trata a acusação como se fosse acidental. Também não ajuda a estipular que a acusação devia estar disponível como alternativa plausível na cultura. Isto não nos leva ao que queremos saber – por que a Bruxaria foi a forma particular de desvio associada com mulheres anormais.
Com essa base de argumentação as possibilidades são infinitas e o problema insolúvel, pois jamais se poderia mostrar ter sido um crime impróprio para acusar mulheres, uma vez que elas eram marginalizadas por um ou outro conjunto de circunstâncias. A marginalização de mulheres torna-se um reflexo da rivalidade de gêneros.
Qualquer crime servirá para expressar essa rivalidade contanto que sejam mulheres a serem acusadas e homens que façam a acusação. O fato de uma acusação ser especificamente de Bruxaria torna-se acidental; ela está sendo “usada” como simples “meio” de alcançar outra coisa, a saber, o “controle social das mulheres” ou, simplesmente, sua opressão.
O resultado é que as coisas que tornam esta acusação o que ela é, que nos permite identificá-la e interpretá-la, são as efetivamente desconsideradas ou reduzidas a ideologia. O fato desses atributos incluírem os traços indica que o crucial para a identificação e acusação era o que as comunidades esperavam de suas bruxas.
Existe uma tendência da lógica caminhar em uma direção impraticável – das circunstancias sociais de mulheres anormais e marginalizadas para as acusações feitas contra elas, como se estas ultimas fossem como conseqüências das primeiras.
Nesta área os historiadores não tem desejado admitir que a Bruxaria tinha uma realidade para os que nela acreditavam. Eles deram preferencia a explicações que apelam para o “social” como algo anterior e subjacente à experiência e ao comportamento.
Tem havido também um interesse fortemente funcionalista no que tange ao comportamento de sociedades quando lidam com “forças” e “rotulações” desviantes. Isto precede qualquer necessidade de olhar de perto o que um rótulo significa aos que o empregam num determinado cenário lingüístico.
Por exemplo, se as bruxas devem ser vistas principalmente como bodes expiatórios para inquietações e fraquezas comunais, só importa então que “bruxa” era um dos rótulos a se aplicar a mulheres nas culturas e não o que alguém possa ter significado algo real, objetivo e socialmente expressivo ao aplicá-lo.
Se começarmos, não por perguntar por que as mulheres eram associadas à Bruxaria, mas por que os contemporâneos associavam a Bruxaria a mulheres. Isso pressupõe que a identificação e a acusação das bruxas era crucial para o que as próprias comunidades esperavam delas. A Bruxaria era um artificio cultural – um crime que significava certas coisas e implicava certos tipos de comportamento nos suspeitos e acusados de praticá-la.
Muito freqüentemente se esquece que um grande numero de casos surgiu de acusações de feitiçaria perniciosa movidas pelas vitimas enfurecidas e assustadas contra quem genuinamente acreditavam que a havia causado.
Como a feitiçaria perniciosa bem como a feitiçaria benéfica eram ambas praticadas, podemos estar diante de nada mais significativo que uma correlação entre o sexo da maioria dos praticantes.
Mesmo sem isso, é assombrosa a evidencia de que as acusações se baseavam em percepções culturalmente fundadas da realidade do maleficium e de sua origem nos poderes de especialistas; só se pode recusar esta evidência recusando-se a idéia de que a realidade pode tomar formas radicalmente diferentes em diferentes cenários culturais.
A noção de Bruxaria para as autoridades acusadoras abarcavam a idéia de que características de gênero faziam das mulheres suas mais prováveis perpetradoras; uma acusação pressupunha uma visão negativa das mulheres.
Era precisamente isto que tornava o crime inteligível como crime que se acreditava ser – um ataque à sociedade em conluio com um demônio que, devido à relativa pecabilidade e fraqueza das mulheres, usava-as como suas agentes. A noção de Bruxaria carregava consigo todo o leque de expectativas sobre comportamento que não só se casava com o que era normal, mas também com o que era exatamente o seu inverso.
As idéias e crenças, expectativas e imaginações, confusões e preconceitos que se enfeixavam para construir as noções de Bruxaria não foram expressos apenas em textos. Também não foram meros reflexos das condições sociais das mulheres.
Essas noções informavam as ações de todos os envolvidos num episódio de Bruxaria e eram modificados no processo de sua interpretação. Eram inapelavelmente “sociais” em sua expressão, assim como as dimensões “sociais” do episódio eram construídas e experimentadas em termos dos significados compartilhados ou contestados pelos participantes.
A associação de Bruxaria com mulheres foi construída em bases inteiramente não originais; foi construída sobre o que havia se tornado o mais banal dos clichês nos séc. XVI e XVII.
Ela incorporava idéias aristotélicas tradicionais considerando as imperfeições inatas das mulheres como homens “deformados”, e ainda a mais profundamente arraigada hostilidade cristã às mulheres como originadoras do pecado. Ela se apoiava sobre a natureza das mulheres muito reiteradas por Saulo de Tarso, pelos padres e pelos filósofos e teólogos medievais.
Assim como a crença em Bruxaria dependia tão somente da misoginia convencional, as dúvidas sobre a realidade da Bruxaria não eram acompanhadas de qualquer coisa que pudesse ser chamada de uma idéia culta das mulheres.
A opinião cética usual era que o pacto e o sabá eram, ou idéias próprias de “bruxas” ou, mas provavelmente, plantadas pelo Diabo como sonhos e fantasias em suas mentes. Por qualquer lado que se olhe, isto exigia uma versão da inconstância e credulidade femininas ainda mais enfática e abrangente.
A Bruxaria como algo que poderia ser intencionado e realizado no reino do fato tinha que ser inteiramente suplantada, ou por ilusões mentais induzidas por condições “femininas” como a melancolia e a histeria, ou por artifícios mentais forjados por demônios intrigantes em mentes inteiramente receptivas – isto é, femininas.
A feminilidade da bruxa constituía agora mais um motivo para duvidar da realidade de suas ações que o terreno para aceitar sua ativa colaboração com o Diabo. Mas ainda era a feminilidade vista em termos totalmente negativos.
Um tema consensual de todas as partes do debate sobre Bruxaria era que, por sua fraca inteligência e a inconsistência de sua crença, as mulheres poderiam ser induzidas a aceitar qualquer coisa. Há porem algumas aparências enganosas.
O próprio fato de que a conexão fosse aceita exige uma interpretação dela em outro nível. Mais especificamente em áreas de escrita onde argumentos são apresentados como verdades evidentes por si próprias e eternas, cuja obviedade resulta de sua conformidade com alguns estados de coisas naturais.
Pois uma verdade retratada como natural é, no entanto, moldada pelo pensamento e a expressão – é algo artificial. E o que é expresso casualmente e sem esforço aparente pode ser o produto de um trabalho intelectual e ideológico considerável.
Seja qual for sua influencia sobre sistemas representacionais como um todo, a relação de gênero é hierarquicamente pesada de tal forma que os homens são simbolicamente associados com um leque de itens e categorias positivos e as mulheres com suas contrapartes negativas.
Em termos de analise, as associações não podem ser vistas como produtos do modo de classificação em si – sua “operação”, por assim dizer. Por certo, os atributos emanam facilmente dessas relações e constituem efetivamente a linguagem em cujos termos as relações são reconhecidas e exploradas.
Mas são atributos conferidos, refletindo, e não causando o funcionamento do próprio sistema de classificação. A classificação polar de gênero não recebeu uma exposição em colunas nos primeiros séculos modernos.
Mas é comum encontrar masculino/feminino entre os contrários que compunham o mundo. A este respeito, a noção neoplatônica de criação e de ordem mundial como uma união e cooperação de forças masculinas e femininas teve uma influencia importante.
Boa parte do arcabouço pré-escolástico e escolástico de oposição de gêneros permaneceu intacto nas disciplinas individuais que formaram o conhecimento renascentista. Esse fogo literário pode não ter tido muito a ver com as experiências vividas de homens e mulheres reais, sua própria artificialidade também tem algumas vantagens preciosas.
De fato, representações de gênero afetavam a maneira como a semelhança e a diferença sexuais eram experimentadas, identificando as situações das quais nosso conhecimento dos mundos passados freqüentemente decorre.
Mas precisamente porque os desvios retóricos exageram o que é persuasivo na linguagem comum pode ser um indicador vital dos pressupostos normativos de uma particular comunidade de fala. Os desvios mostram que o gênero era evidentemente um outro componente do dualismo com que os intelectuais masculinos contemporâneos estavam habituados.
Portanto, por trás da aparente naturalidade com que se associavam Bruxaria a mulheres jaziam as exigências mais estritas de um esquema representacional coletivo. Mas se todas as bruxas eram mulheres, todas as mulheres não eram bruxas. A representação de gêneros lembra novamente que a inversão não era estranha ao sistema de classificação mas apenas sua modificação.
A complementaridade era o aspecto benigno da oposição; a inversão, o maligno. A Bruxaria tomou seu lugar ao lado das outras desordens como um exemplo evidente de desvio feminino – um desvio que só poderia tomar formas inversivas. Todos os desvios eram velhos motivos na história das mulheres, mas todos alcançaram grande destaque e disseminação na época dos julgamentos de bruxas.
As bruxas alegadamente cometiam todas as transgressões que as mulheres podiam individualmente cometer, todas numa base coletiva e organizada. As bruxas eram mulheres porque o sistema representacional que as regia exigia, para sua coerência, uma correlação geral entre posições binárias; eram mulheres que invertiam os atributos polarizados atribuídos aos gêneros na cultura instruída do final do período medieval e início da era moderna; elas eram consideradas as mais extremadas e perigosas.
Clark, Stuart. Pensando com Demônios. Edusp: 2006, pg. 155-187.

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